Legi�o Urbana Uma Outra Esta��o
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Renato no Pa�s do Espelho�s 1h15 do dia 11 de outubro de 1996, aos 36 anos, Renato Russo, uma das personalidades mais complexas e not�veis do pop brasileiro, rock e MPB inclu�dos. Era uma morte esperada - no sentido estrito, porque j� havia alguns meses que as decorr�ncias da AIDS, as infec��es oportunestas e a depress�o, o acompanhamento di�rio de m�dicos, j� faziam parte do seu cotidiano. Lan�ado menos de um m�s antes, o �ltimo disco da Legi�o Urbana (A Tempestade ou O Livro Dos Dias), trouxe claros sinais disso, nas letras e na voz cansada de Russo. Uma onda de boatos antecipou sua morte em alguns dias. Mas, num sentido mais amplo, o foco tr�gico da realidade foi o que sempre embalou a sua arte. Um dos segredos das letras de Renato Russo era descobrir no drama pequeno, microc�smico, pessoal, familiar, uma intensidade e um perigo mortais, uma fonte do real desespero. Contra a vis�o banalizante da vida, o seu mundo de fantasmas e anjos, do embate cruento entre o bem e o mal - mesmo que disfar�ado entre brigas bestas de pois e filhos, nas "ficadas" inconseq�entes de meninos e meninas, nas birras prosaicas dos adolescentes. De certa forma, Renato permaneceu "adolescente" - e adolescente problem�tico - at� o final, paralisado naquela transi��o entre a percep��o m�gica da inf�ncia e a (suposta) responsabilidade da vida adulta, recusando-se a qualquer forma de coniv�ncia com as agruras e o cinismo de um mundo que n�o tinha a sua cara. � esse jogo doloroso de recusa e afirma��o que ele sustentou at� o final das suas for�as - � coerente que ele n�o tenha morrido de overdose acidental (inconseq��ncia de mais) ou suic�dio (responsabilidade demais), mesmo que tenha flertado com essas "solu��es". � essa dor que ele partilhou at� o final com sus f�s - e que � tamb�m a dor de seus f�s - na forma mais real de comunh�o (comunh�o de felicidade � f�cil). E � por isso que sua morte suscita coment�rios sintom�ticos, surpreendentes. "De certa forma � um al�vio", disse um sincero (e chocantemente objetivo) Herbert Vianna - que, se tem suas ang�stias criativas lancinantes, as guarda l� para ele mesmo. Ou, como disse um f� de Renato � revista Manchete, "ele falava as coisas que eu pensava, mesmo antes de eu pensar". Asneira, diria um c�nico, Mas a rela��o de Renato Russo com os f�s era essa mesma: a de um jogo de espelhos. Como no caso do f� an�nimo que agarrou seu bra�o no Shopping da G�vea (Rio), e disse, agressivo: "Eu n�o te dei o direito de colocar a minha vida na sua m�sica", falando de "Ainda � Cedo". A vida de quem? A dor de quem? O artista enquanto esponja do sofrimento da humanidade. Segundo a m�e de Renato, ele era capaz de sofrer at� com "uma guerra l� na Cochinchina". Essa comunica��o "telep�tica" j� era o suficiente, e �s vezes at� demais. � por isso que o lado cat�rtico do rock - o dos shows nos grandes est�dio -, foi sendo cada vez menos explorado, at� o abandono total: Renato passou a alegar "fobia de palco" a partir do ano passado. Para ele, a encarna��o do p�blico em um monstro coletivo, despersonalizdo, e bo�al era um pesadelo (um pesadelo real, como no malfadado show de Bras�lia em 88 que degringolou em pancadaria). As tentativas p�blicas de Renato sempre tinham algum travo de constranimento, fosse pelo lado messi�nico-militar da sua persona (houve em que, nos intervalos das m�sicas, ele discursou a respeito de fraude nos vestibulares, das elei��es indiretas, dos cambistas de ingressos e mais dois ou tr�s assuntos do notici�rio), fosse pelo lado entertainer-fake (como no show que finalizou com explos�es de fogos de artif�cio ao som da "Rhapsdy in blue" com se fosse na Disneyl�ndia. A m�sica da Legi�o, no fundo, � para ser ouvida em casa, tipo trancado sozinho no quarto - que � como Renato sempre preferiu ouvir os seus (dos outros) discos. A tentativa de "enquadrar" Renato nos procedimentos comerciais da ind�stria cultural sempre se revelou ineficiente. Consta que sua primeira tentativa de suic�dio (em 84) decorreu, entre outras coisas, das brigas com a gravadora EMI-Odeon por causa das interfer�ncias nos arranjos das m�sicas ("Gera��o Coca-Cola", em particular). Esse seu "defeito" acabou se transformando na sua principal qualidade: credibilidade. Suas letras cada vez mais complicadas foram entendidas e adotadas j� no segundo disco: no show de lan�amento de Dois no Rio de Janeiro no morro da Urca, o p�blico cantava junto os versos rec�m-decorados (sabe-se l� como) de "�ndios": "Quem me dera ao menos uma vez/ Esquecer que acreditei que era por brincadeira/ Que se cortava sempre um pano-de-ch�o/ De nobre linho e pura seda"... O sucesso de "Eduardo E M�nica" em 86 transtornou a programa��o de r�dio, com uma m�sica de poucos usuais 8 minutos de dura��o. Os diretores da gravador se referiam a Renato como "nosso menino temperamental" ("nosso vendedor de discos mais consistente", era o que eles queria dizer). A breguice assumida de seu disco "italiano" � subvers�o pura, a pose na frente da pose que entrega o sentimental ao fundo. O Renato de verdade "era" sofrimento (ele mesmo dizia). Em uma personalidade mais exuberante, isso muito simplesmente descambaria para a esteticiza��o do masoquismo, para as formas mais decadentistas da arte. "N�o vou fazer da minha m�sica um equivalente sonoro das fotos de Robert Mapplethorpe", disse ele, se referindo ao pol�mico fot�grafo da cena sado-gay americana. O lado bom-mo�o de Renato (expresso na sua indefect�vel barbinha e �culos de universit�rio caxias, que sempre voltavam depois das tentativas de mudan�a) prevaleceu. E, de certa forma, o "Renato de verdade" continuou a ser o das letras, arrancando otimismo do fundo do po�o, e n�o o eventual b�bado que pagou mico nas noites cariocas (ao contr�rio de Cazuza, que era o mesmo nos micos e nas letras), ou o junkie de her�, ou o safado que organizava orgias em casa. Um artista que n�o aproveitou o reconhecimento para escapar do sofrimento do mundo e gozar a grana, mas, ao contr�rio, que poupou o p�blico de suas fantasias mais conturbadas, como se tivesse um certo escr�pulo de viver menos tediosa e comportadamente do que o estudante, a banc�ria, o funcion�rio que o admiravam. � por isso que � impressionante, mas coerente, numa cultura prom�scua como a nossa (falo de Mamonas morrendo no Gugu Liberato), que a sua contamina��o pelo v�rus da AIDS tenha permanecido um segredo at� o fim. � coerente porque tanto faz (peticamente falando) se ele
tinha AIDS ou n�o - no caso dele, bastava viver em um mundo em
que algu�m tivesse. E impressionante (pol�ticamente falando)
pela fidelidade de seus amigos mais pr�ximos, que jamais
especularam sobre o assunto, apesar de todas as evid�ncias. Seu
sil�ncio (um raro sil�ncio na criatura mais opinativa do mundo)
criou um dogma, mas um dogma no sentido original, religioso (e
n�o fascista), daqueles que fazem pensar, optar - e mudar o
mundo. Sua �ltima vit�ria. |
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Skooter 1998 - 2008 |
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