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RENATO RUSSO ENCARA O DESAFIO DE CANTAR
COM SINCERIDADE E MUITA QUALIDADE
(Estado - 16/12/95)
Tanto no trabalho com o Legi�o Urbana quanto nos �lbuns solos, o
m�sico, que gosta de cantar, procura falar de relacionamentos, do universo humano, das
sensa��es e do que cada um tem dentro de si.
(Por Gabriel Bastos Junior)
Renato Russo tem fama de n�o gostar de dar entrevista. � poss�vel,
j� que ele sempre teve problemas com a imprensa. Mas, quando come�a a falar, n�o falta
nada: carreira solo, Legi�o, depend�ncia qu�mica, gera��o do rock de Bras�lia. S�
n�o fala do filho, Giuliano Manfredini, de 6 anos, autor dos desenhos da capa de
Equil�brio Distante.
Caderno 2 - Com Equil�brio Distante voc� est� encarando
definitivamente o desafio de ser int�rprete?
Renato Russo - O Legi�o tem uma concep��o fechada de trabalho. As
can��es e as letras t�m certas caracter�sticas que est�o dentro desta concep��o do
que a gente representa dentro do universo do rock-and-roll e da m�sica pop. E eu gosto
muito de cantar. V�rias vezes, pela pr�pria maneira que a gente comp�e, a letra � mais
importante do que o canto.
Caderno 2 - Isso come�ou com o The Stonewall Celebration.
Russo - O Stonewall foi uma primeira tentativa de fazer algumas coisas
minhas j� que a Legi�o j� estava sedimentada. Depois de 10 anos, sem desmerecer o
trabalho principal, os membros de um grupo v�o tendo outros interesses e esse foi o meu.
O Bonf� est� trabalhando com computa��o gr�fica. O Dado tem o selo Rock It! O que eu
gosto mesmo � de m�sica. � de cantar. Eu tinha algumas outras op��es, como escrever,
trabalhar com cinema, mas o que eu queria mesmo era continuar trabalhando com m�sica.
Caderno 2 - O disco tinha 50% da renda revertida para a campanha do
Betinho.
Russo - Ele nasceu da id�ia de colaborar com a campanha. E aproveitei
para usar o disco como uma esp�cie de exorcismo de um relacionamento que eu tinha tido e
n�o deu certo. E tamb�m para dar a minha marca nos 25 anos da celebra��o de Stonewall,
um marco na quest�o dos direitos humanos em rela��o � sexualidade.
Caderno 2 - Mas h� outros interesses al�m do canto...
Russo - Para mim entra no aspecto da produ��o. Nesse novo disco eu
pude trabalhar com outros m�sicos, com outras conven��es musicais. A grande brincadeira
dos discos solo � entrar mais pelo lado da m�dia para ver como a coisa funciona. Quero
fazer v�rias entrevistas, fazer Xuxa Hits. Acho que o trabalho permite isso porque � um
outro conte�do. N�o � a minha vida que est� ali na linha. Legi�o � uma coisa que o
p�blico percebe como sendo al�m de m�sica. Nos discos solos estou fazendo s� m�sica.
Caderno 2 - E por que em italiano?
Russo - Gravar em outras l�nguas � simplesmente para n�o confundir
com o Legi�o Urbana. Eu at� poderia ter gravado em portugu�s, mas as pessoas iam achar
que era o novo disco do Legi�o ou que a Legi�o acabou. Nos dois discos fica bem claro
que � um trabalho separado. Mesmo se eu cantasse standards de MPB, as pessoas iam
confundir.
Caderno 2 - Seu disco solo acabou adiando o novo da Legi�o...
Russo - A Legi�o est� lan�ando os seis primeiros discos
remasterizados em Londres, com uma produ��o gr�fica atualizada. Consertamos tudo. � do
interesse da gravadora porque grande parte das nossas vendas foi feita em vinil e essa �
uma maneira de relan�ar tudo em CD. Fizemos dez anos em 1994. A gente n�o acha muito
tempo, mas todo mundo ficou cobrando uma comemora��o que resolvemos n�o fazer. Espero
que isso chame a aten��o das pessoas para o que foi feito nesse per�odo.
Caderno 2 - A remasteriza��o n�o tira a espontaneidade,
principalmente do primeiro disco?
Russo - Voc� vai ouvir todos os erros. � a mesma mixagem, os mesmos arranjos. Mas o som
vem menos velado. Embora a gente n�o tenha mexido na mixagem, os discos v�m com essa
sonoridade mais atual, mais dentro dos padr�es da ind�stria nos anos 90.
Caderno 2 - Mas n�o significa deixar de lado o novo disco.
Russo - A gente ainda n�o sabe qual vai ser o perfil do disco. Mas
j� tenho algumas letras escritas e temos muito material.
Caderno 2 - Mas o formato do Legi�o ainda te agrada?
Russo - Se me agradasse completamente eu n�o estava fazendo disco
solo. Mas acho que o desafio � voc� fazer uma coisa sincera e de qualidade dentro do
formato. � um formato fechado, mas � muito profundo. Eu n�o vou fazer uma m�sica como
O Vira, dos Mamonas Assassinas. Mas dentro da nossa concep��o existem n possibilidades,
porque a gente fala de relacionamento, do universo humano, das sensa��es, do que cada um
tem dentro de si. Isso para mim � uma coisa quase infinita. Tem coisas que s�o da mesma
linha. Bader Meinhoff Blues no primeiro; no segundo tem F�brica, ou mesmo �ndios; no
terceiro tem Que Pa�s � Este e Mais do Mesmo; no quarto tem H� Tempos; no quinto tem
Teatro dos Vampiros, que � mais suavezinha, mas � a mesma coisa; e, agora, em
Descobrimento do Brasil, voc� tem Perfei��o. Eu gostaria de acreditar que s�o m�sicas
completamente diferentes, mas se voc� parar para pensar, a gente est� falando da mesma
coisa.
Caderno 2 - Como mudou sua rela��o com as drogas. Voc� continua
dependente?
Russo - Tenho depend�ncia qu�mica, que � como ser canhoto ou
dalt�nico. Eu sou o que se chama "dependente qu�mico em recupera��o". Eu
estou na programa��o desde 1992 e n�o uso mais nada porque eu n�o posso. Comecei a
beber com 17 anos. O neg�cio s� ficou pesado mesmo aos 28.
Caderno 2 - Mas n�o era apenas �lcool...
Russo - Infelizmente a droga � um meio de confraterniza��o social.
No meio art�stico, quando voc� faz sucesso, todo mundo oferece droga. E voc� vai
pegando porque o neg�cio � bom. De madrugada, no est�dio, quando algu�m faz uma
presen�a, voc� vai ficar no cafezinho? E comigo ainda tinha essa hist�ria de
romantizar. E o pior � que a coisa chega a um ponto que � vergonhoso. Eu vi que a
situa��o estava feia quando come�aram a dizer que eu armei cena em festa que eu nem
fui, s� porque j� era lugar-comum. � completamente degradante e eu gosto de falar sobre
isso porque me d� for�a. Faz parte da programa��o lembrar como era ruim. E o neg�cio
� que n�o tem meio-termo.
Caderno 2 - O consumo ou n�o de drogas afeta a criatividade?
Russo - Essa id�ia de voc� estar calibrado ou usar subst�ncias
qu�micas de qualquer tipo aumenta a inspira��o n�o � verdade. Mas quando a pessoa
bebe, usa drogas e tudo o mais, ela naturalmente vai viver certas experi�ncias que a
pessoa careta n�o vai. Eu me metia nuns buracos, conhecia umas pessoas estranhas. Se eu
fico na Galeria Alaska at� as 6 horas, vou ter uma vis�o diferente de quem acorda cedo e
pega sol. Algumas pessoas acreditam que isso afete o trabalho, mas eu acredito que n�o. A
inspira��o � uma coisa que n�o d� para voc� for�ar. Para mim geralmente vem quando
eu estou tentando dormir. Justo o contr�rio, quando eu usava droga para tentar trabalhar,
o resultado ficava mais lento e disperso. J� teve vez que tomei �cido e escrevi para
caramba. Na hora voc� acha uma obra-prima, mas no dia seguinte v� que n�o tem nada ali.
Em geral atrapalha tudo. Voc� usar alguma coisa durante a mixagem, por exemplo, � um
caos.
Caderno 2 - Mas voc� encaretou?
Russo - J� tenho uma boa bagagem de experi�ncia, n�o preciso sair
por a� para conhecer o mundo. J� fiz muita loucura. E certas coisas que eu romantizava,
hoje n�o acho mais maravilhosas. Tenho alguns amigos que ainda glamourizam essas coisas.
Gente que adora os filmes do Jim Jarmusch. At� acho alguns interessantes, mas eu n�o
queria conhecer aquelas pessoas.
Caderno 2 - Que pessoas voc� quer conhecer hoje?
Russo - Acho interessante conhecer pessoas de verdade. Quando eu
trabalhava no Minist�rio da Agricultura, por volta de 1982, sempre fazia trabalho de
campo. Eu era da Coordenadoria de Orienta��o e Defesa ao Consumidor, que foi um dos
primeiros �rg�os do g�nero. Eu sa�a por a� vendo se os supermercados estavam ligando
os freezers, se os produtos estavam na validade. Eu tinha de fazer "povo fala" -
parar as pessoas na rua e conversar, por exemplo, sobre o pre�o do feij�o. Era uma coisa
fabulosa. Essas pessoas me interessam. Agora, quem fica jogado na noite, drogado, sem
fazer nada de produtivo, n�o me interessa. O que eu tinha em comum com essas pessoas era
estar doid�o. Hoje n�o tenho mais nada.
Caderno 2 - Quando foi esse emprego? Antes da Legi�o?
Russo - Nessa �poca eu era o Trovador Solit�rio. Tinha brigado com o
pessoal do Aborto El�trico, porque achava que eles n�o me davam valor. Ent�o ficava
tocando umas m�sicas s� com viol�o para abrir os shows do pessoal. Foi nessa �poca que
compus Eduardo e M�nica, Faroeste Caboclo. A� eu cansei e resolvi fazer a Legi�o com o
Bonf�.
Caderno 2 - O Dinho Ouro Preto, do Capital, era do Aborto?
Russo - N�o. Dinho era f� de Led Zeppelin. A gente gostava de
Siouxie and the Banshees, ent�o era proibido gostar de Led Zeppelin e ter cabelo
comprido. At� que um dia ele virou punk. Mas todo mundo fazia tudo junto e o primeiro
disco do Capital tinha v�rias m�sicas que eles pegaram do Aborto El�trico, porque o
Fl�vio (baixista) e o F� (baterista) eram do Aborto. Eu peguei uma parte e eles pegaram
as m�sicas que o Fl�vio fez a melodia, como Veraneio Vasca�na.
Caderno 2 - E onde entrou a Legi�o nessa hist�ria?
Russo - O Bonf� tocava em todas as bandas. Tocou no XXX, no Dado e o
Reino Animal, na Blitz de Bras�lia, nos Metralhas, no SLU. Eu fiquei s� no Aborto
El�trico, depois fui tocar viol�o e n�o sabia o que ia fazer. O Dado na �poca estava
tocando com o Dado e o Reino Animal, mas ele n�o sabia tocar guitarra direito.
Caderno 2 - Como assim?
Russo - N�o sabia mesmo. Ele teve de aprender a tocar guitarra para
tocar com a Legi�o. Em duas semanas ele aprendeu a tocar nove m�sicas. No primeiro show
a gente tocou Ainda � Cedo e ele praticamente nunca tinha visto uma guitarra. A gente
ficava: "Faz barulhinho." Da� � que saiu o solo. At� se tornar uma coisa
completamente zen e espetacular como pode ser ouvido em M�sica para Acampamentos. O solo
dele naquela grava��o ao vivo � fabuloso.
Caderno 2 - Mas a id�ia da Legi�o...
Russo - A id�ia, j� que tinha tanta gente tocando, era fazer um
n�cleo de baixo e bateria - eu e o Bonf� - e chamar as pessoas para fazerem uma m�sica.
Por isso a gente era a Legi�o Urbana. S� que � claro que isso n�o deu certo porque
n�o dava para organizar.
Caderno 2 - Dado n�o foi o primeiro.
Russo - Chamamos um carinha chamado Eduardo Paran�. Ele era meio
jazz-fusion, mas era bonitinho. Tinha umas hist�rias engra�adas, porque ele solava o
tempo todo e dizia: "Eu n�o vou fazer barulhinho porque as pessoas v�o achar que eu
n�o sei tocar." E tinha um tecladista, o Paulo Paulista, que s� entrou na banda
porque tinha um tecladinho. A gente n�o aproveitou nenhuma das m�sicas que fez nessa
�poca. Era muito pop. Eu escolhia todos os meninos bonitinhos e via se tinham um m�nimo
de talento musical. Tinha um menino chamado Beto Pastel. Era um homem lindo, mas n�o
sabia tocar nada.
Caderno 2 - Voc�s chegaram a se apresentar com essa forma��o?
Russo - Uma das primeiras apresenta��es da gente foi em Patos de
Minas. A gente sempre mimeografava as letras e um general pegou a letra de M�sica Urbana,
que falava "os PMs armados e as tropas de choque vomitam m�sica urbana". S�
que a gente era supercomportado no palco. Ent�o eles acharam que quem tinha feito o
panfleto havia sido a Plebe Rude.
Caderno 2 - Quando foi a entrada de Dado?
Russo - Um dia o Paran� cansou de brigar com o Bonf� e decidiu
estudar reg�ncia e "levar m�sica a s�rio", como ele dizia. O Paulista tinha
16 anos, mas parecia 30 e resolveu sair tamb�m. Nessa �poca estava marcada a primeira
grande apresenta��o das bandas de Bras�lia, no audit�rio da Associa��o Brasileira de
Odontologia (ABO). Iam tocar as quatro principais bandas combinadas em duplas: Plebe Rude,
Legi�o, XXX e Capital Inicial. Faltava um pouco mais de um m�s e a gente completamente
sem guitarrista. Chamamos o Ico Ouro Preto, irm�o do Dinho, que tinha sido do Aborto. No
segundo ensaio ele desistiu. A� j� n�o tinha ningu�m bonitinho e a gente chamou o
Dado. Ele foi aprendendo e acho que hoje � um dos grandes guitarristas porque tem estilo
pr�prio.
Caderno 2 - O contrato com a EMI veio do show na ABO?
Russo - Os nossos padrinhos eram os Paralamas porque o Bi era amigo de
todo mundo. Eles gravaram Qu�mica e sempre tocavam nos shows. Foram eles que apresentaram
uma fita ac�stica minha, que eu fiz para o Ico levar para a Fran�a, para o George
Davidson, da Odeon, que quis saber quem eu era. S� que nessa �poca eu j� estava com a
Legi�o e eles n�o sabiam. Quando nos viram, tomaram um susto porque era mais um trio de
Bras�lia com vocalista de �culos. Com o tempo acabou se decidindo que era melhor eu s�
cantar e o Bonf� chamou o Renato Rocha. Na �poca, eu j� estava pensando no disco. Ia se
chamar Revolu��es por Minuto e ia ter London London.
Caderno 2 - Voc�s foram a primeira banda a sair direto em LP e
fizeram sucesso de cara...
Russo - Na gravadora ningu�m dava nada. S� que o disco vendeu, na
�poca, 50 mil c�pias. Mas a grande virada foi no Dois. Todo mundo esperava punk rock de
Bras�lia e a gente chega com uma balada de 5 minutos com viol�o, voz e pandeiro, falando
de um casal (Eduardo e M�nica). Quiseram derrubar, mas como j� tinham errado na primeira
vez, a gente insistiu em fazer do nosso jeito. E o disco vendeu quase 1 milh�o de
c�pias. Nosso primeiro contrato era para dois compactos. Depois que a gente fez sucesso,
passou a ser dois LPs. Contrato de gravadora � que nem Fausto assinando com
Mefist�feles: uma v�rgula pode mudar tudo. Agora que o nosso contrato est� acabando
eles est�o tratando a gente a p�o-de-l�. Este ano n�s vendemos 150 mil discos s� com
material de cat�logo.
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