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Voz Guia
Jornal "O Povo"
Voz Guia
O jornalista T�rik de Souza escreve e Herbert Viana fala sobre o amigo Renato Russo
Data: 14/10/96 Tamanho: G
Editoria: Vida & Arte P�gina: 5B
Clich�: Primeiro
Cr�dito: Marcos Prado
Legenda: Renato Russo, l�der do Legi�o: garotinho alegre que �s vezes virava um monstro de agressividade
Sid Vicious. Cazuza. Ian Curtis. Renato Russo. Ser� que algu�m ainda duvida do lema "no future" da gera��o punk?
Kurt Cobain puxou o gatilho como se quisesse provar que o chamado grunge era apenas uma coda destes tempos ceifadores. Entre o cinismo de John "Lucro imundo" Lydon e o desespero destes bonzos auto-imoladores haver� escolha? Renato Russo fez a dele. Pisou no acelerador como Johnny, o James Dean tardio de Dezesseis ("pra estrada da morte, o maior pega que existiu"), do disco testamento, A Tempestade - O livro dos dias, lan�ado h� semanas. E n�o ficou nisso. Seus graves de Jerry Adriani de uma Jovem Guarda amadurecida a f�rceps imprimiram outros recados na despedida. "Ter esperan�a � hipocrisia/ a felicidade � uma mentira/ e a mentira � salva��o", constatava logo na abertura, "Nat�lia", a faixa que prefaciava o disco sem meias tintas: "Vamos falar de pesticidas/ e de trag�dias radioativas/ de doen�as incur�veis".
Renato Manfredini Jr., carioca, 36 anos, foi a voz guia do Legi�o e do que ele pr�prio denominou Gera��o Coca-Cola. "Desde pequenos n�s comemos lixo/ comercial e industrial/ mas agora chegou a nossa vez/ de cuspir de volta o lixo em cima de voc�s", anunciava a letra.
O feto do Aborto El�trico - o primeiro grupo formado pelo ent�o baixista Renato, ainda em Bras�lia, ao lado de Andr� Pretorius (guitarra) e Felipe Lemos (bateria) - escapou de ir para o ralo e ganhou vida selvagem. Por sinal foi no grupo Dado e o Reino Animal (um dos que agitavam a cena punk candanga, ao lado dos Vigaristas de Istambul, XXX e Blitz 64), que Renato foi buscar o l�der, Dado Villa Lobos, improvisando-o em guitarrista ao lado do novo batera titular, Marcelo Bonf�. Nascia o trio b�sico (refor�ado pelo baixista Renato Rocha, que acabaria saindo) do Legi�o. Ele se tornaria um dos tr�s grupos mais importantes do BRock dos 80 ao lado de outros cariocas com est�gio em Bras�lia, os Paralamas do Sucesso e dos paulistas Tit�s. Da garagem para a superestrutura, como os Sex Pistols maquinados por Malcolm McLaren? Ou como o Nirvana, de Cobain, que esfregou na cara dos desmemoriados que a enflanelada Seattle tamb�m era a terra de Jimi Hendrix?
Comparada tamb�m aos Smiths, a banda do enfossado Morrissey (que coerente com seu egocentrismo se tornaria um popstar de rota solit�ria) ou ao Joy Division de Ian Curtis, o Legi�o fez uma trajet�ria peculiar ao rock nascido nestes tr�picos cancer�genos. N�o se limitou a traduzir - e Renato dominava o ingl�s como um �cone anterior do peda�o, Raul Seixas - para o pa�s do sambanejo a sintaxe ramoniana. Como Raul, que aprendeu suas li��es por coincid�ncia produzindo e fornecendo baladas para Jerry Adriani, Renato nunca lapidou seu melodismo brutalista (vide "Eduardo e M�nica", da �poca em que ele se apresentava como trovador solit�rio abrindo shows em Bras�lia) na dire��o de um virtuosismo incompat�vel com o fa�a-voc�-mesmo do punk. Enquanto as letras desciam aos abismos sem escafandro esteticista, a m�sica singela que batia no fundo podia ser atravessada a p� pelas multid�es tangidas dos rebanhos descal�os de Roberto Carlos ou Amado Batista, numa confirma��o do nome prof�tico da banda.
Caso raro, o cheque em branco dado pela massifica��o n�o foi usado na compra de iates ou consci�ncias. Nem patroc�nio - com exce��o da s�rie Alternativa nativa, no come�o da explos�o - o Legi�o carimbou na camiseta surrada que Renato esfregava no ch�o, no bal� convulso de suas apresenta��es espor�dicas. O messianismo das mensagens ("Que pa�s � esse", "M�sica urbana", "Ser�", "Faroeste caboclo", "A fonte") funcionava mais como nega��o e grito de socorro que palavra de ordem. Como num contraponto de gera��es e atitudes, j� que a sociedade alternativa p�s-hippie pregada por Raul Seixas e Paulo Coelho tinha ido para o brejo, s� restava contabilizar o tempo perdido: "Todos os dias quando acordo/ n�o tenho mais o tempo que passou". Peneirar o T�dio (com um T bem grande pra voc�): "n�o tenho gasolina, tamb�m n�o tenho carro/ tamb�m n�o tenho nada de interessante para fazer". Ou decretar a fal�ncia dos profetas do papo-cabe�a. "Estou cansado de ouvir falar/ em Freud, Jung, Engels, arx/ intrigas intelectuais/ rodando em mesa de bar", cuspia "Conex�o amaz�nica", j� nos tempos do Aborto El�trico.
Essa po�tica da nega��o atirada em versos brancos, de apar�ncia desleixada, sem rima e sem solu��es, certamente n�o teria o mesmo peso sem o carisma do performer Renato Russo. Mesmo quando o cantor se transformou num recluso progressivo a partir do Altamont da banda num show em Bras�lia que terminou em conflito generalizado em junho de 1988, seu nome solit�rio ainda conseguiu vender toneladas de um disco de baladas em ingl�s (The Stonewall Celebration Concert) e de outro em italiano, resgatando suas origens familiares (Equilibrio Distante). Com o primeiro, ele tirou em definitivo do arm�rio sua defini��o sexual, j� sublinhada em versos tipo "eu gosto de meninos e meninas" do disco As Quatro Esta��es. A partir do segundo, ele fez renascer no pa�s o interesse pela can��o italiana, morta desde os anos 60, com exce��o de hits avulsos de Lucio Dalla e da vers�o "Bem que se quis" de Nelson Motta para uma m�sica de Pino Danielle cantada por Marisa Monte. A�m da lideran�a impl�cita e da genialidade po�tica de fio terra da ra�a e parab�lica de gera��o, Renato Russo deixa um legado de integridade art�stica � prova de bulas. Ele esquadrinhou seus cantos pessoais mais ocultos com a sinceridade dos que p�em a alma pela boca. Sua vida foi um disco aberto. E a todo volume.
"Ele tinha um eterno senso de inadequa��o. Depois que o conheci em Bras�lia, o Renato me surpreendeu muito. Era um pouco esquizofr�nico.
�s vezes parecia um garotinho alegre, �s vezes virava um monstro de agressividade". A defini��o � de Herbert Vianna, algu�m que conheceu Renato Russo desde a adolesc�ncia, quando morava na Quadra 104, na Bras�lia do fim dos anos 70. L�der do Paralamas do Sucesso, Herbert � quem a mais tempo conhecia o cantor e compositor. Era a �poca em que Bras�lia balan�ava ao som da Plebe Rude, Capital Inicial e Legi�o Urbana. O Paralamas s� iria surgir no Rio. Renato Russo ainda era conhecido como Renato Manfredini, e s� mudaria para Russo em homenagem ao fil�sofo franc�s Jean-Jacques Rousseau.
Quando Herbert o conheceu, o filho de diplomatas era um rep�rter-humorista na r�dio fict�cia de Lu�s Gustavo, um hil�rio amigo em comum. "Ele inventou o personagem do rep�rter Gelson Jorge. Quando o conheci, achei-o superd�cil, bem submisso e alegre. Certa vez, ele foi a minha casa s� porque soube que eu tinha uma guitarra Gibson. Estava maravilhado e tinha um jeito muito t�mido de dizer o tempo todo: `Isso � j�ia, poxa!'. O lado agressivo e turbulento s� veio � tona depois da fama e do sucesso", contou um emocionado Herbert.
Mas Herbert destaca tamb�m o lado precoce de Renato, que nunca chegou a ser um amigo �ntimo. "Quando eu estava come�ando a compor, pegava meu viol�o para mostrar umas baladas e o Renato j� vinha com "Eduardo e M�nica" e "Faroeste Caboclo". Eram m�sicas que ele j� tinha guardadas havia muito tempo, mas s� iria revelar anos depois", diz. Quando Renato subia num palco, j� havia uma legi�o de admiradores de sua voz potente e de suas letras. Mas ele ainda n�o tinha a imagem ligada a problemas com �lcool e drogas. "Eu soube desses problemas pelos jornais. Eu tinha a imagem dele como uma pessoa muito culta, que sabia de toda a hist�ria do rock e brincava inventando a trajet�ria inteira de conjuntos fict�cios, num exerc�cio de imagina��o", conta.
Mas Herbert lembra tamb�m de um lado sombrio que sempre acompanhou o temperamento de Renato. "Ele tentou se matar uma vez, em Bras�lia, cortando os pulsos. Creio que a morte sempre foi algo muito fascinante para ele", revela. J� no Rio, segundo Herbert, Renato Russo chegou a passar uma semana morando na cal�ada em frente ao cinema Odeon, na Cinel�ndia, com um grupo de mendigos. "Era uma �poca em que ele estava bebendo muito, estava muito deprimido. Ele tinha um lado rom�ntico radical", surpreende Herbert. Para ele, Renato variava de uma agressividade extrema a uma docilidade angelical. "Ele tinha um conflito interno tremendo", define. Para Herbert, isso se refletia nas m�sicas dele, como "Perfei��o" e "Todos juntos".
Nos �ltimos tempos, Herbert n�o tinha muito contato com Renato. "Ele apenas mandava recados. Quando lan�amos o disco Severino, ele mandou dizer que eu devia voltar a gravar singles. E quando lan�amos o Vamo bat� lata, ele mandou v�rios elogios", conta. Herbert sabia h� algum tempo que Renato estava com Aids, mas tinha recebido not�cias otimistas nos �ltimos tempos. "Tinham me falado que a taxa do v�rus tinha baixado com o uso do coquetel de drogas. Eu estava com o feeling de que ele se salvaria, porque ouvi falar de casos de contaminados que tinham melhorado", diz. Herbert acompanhava os problemas com drogas pela imprensa.
"Eu vi o dizendo que tinha parado de usar coca�na. Sobre pico, n�o acredito que tomasse. Mas a imagem que fica dele n�o � do doid�o, � da pessoa sens�vel", defende. Essa sensibilidade acabava fazendo o cantor alternar estados de euforia e de depress�o. "Mas seu lado culto sempre vinha na frente. Ele era de ficar conversando horas seguidas com a secret�ria de sua gravadora apenas em ingl�s. "Ele ficava alternando o sotaque americano com o da Inglaterra. Falava um ingl�s perfeito e, nos �ltimos anos, passou para o italiano", diz.
Herbert Vianna lembra de uma frase que ele entreouviu em um aeroporto, de uma f� do grupo. Ele estava numa livraria no aeroporto em S�o Paulo, e o Legi�o Urbana ia dar um show em um est�dio pr�ximo. "A menina da loja ent�o me disse: `Se houvesse uma religi�o Renato Russo, eu seria dessa religi�o"', recorda Herbert. O guitarrista lembra que foram os Paralamas que trouxeram o Legi�o Urbana para o Rio. "Quando a gente veio, apresentamos uma fita do grupo para o nosso empres�rio, o George Davison. Depois, gravamos a m�sica Qu�mica no nosso primeiro disco para dar uma for�a para o Legi�o", conta.
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