Legi�o Urbana Uma Outra Esta��o
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HIST�RIAS URBANAS (Sui Generis - 06/1995) (Por Eliane Lobato - jornalista da revista
Isto�) O garoto Renato Manfredini Jr. n�o tinha uma legi�o
de amigos. Ele era um pouco diferente dos demais: para come�ar, n�o se sentia
atra�do pelas meninas e gostava muito mais dos meninos. Sua situa��o social
piorou um pouco, logo nos famosos 15 anos de idade, devido a uma enfermidade na
perna esquerda que fez com que aquele desengon�ado corp�o de 1,75 de altura
desabasse, ap�s v�rias cirurgias e tratamentos m�dicos, numa horr�vel
cadeira de rodas. Foi demais para a auto-estima de quem era impiedoso ao estimar
seu pr�prio valor. Mas, recuperado enfim, restava a Renato duas alternativas:
desencavar uma maneira de sobressair-se para compensar a considerada sofr�vel
atua��o esportista, sexual, social etc, ou resignar-se a uma vidinha bem
besta. A segunda hip�tese
emba�ava seus �culos de tanto pavor. E assim, ele preferiu sair correndo - j�
com as pernas livres de aparelhos - em busca de algum p�dium enquanto em sua
cabe�a vozes ecoavam: "Go Forrest!", quer dizer, "Em frente Renato!".
Manfredini Jr. virou Russo e Renato "conquistou a Am�rica" como um
excelente contador de hist�rias. S� que, transmutadas em can��es. Algumas
delas, Renato Russo, 35 anos, extraiu de sua pr�pria viv�ncia como homossexual
suavemente disfar�ado at� sete anos atr�s, quando decidiu revelar
publicamente sua op��o sexual; como drogado e alco�latra at� h� dois ou,
como cidad�o comum que enxerga indec�ncia numa fila de pessoas idosas que, ap�s
uma vida de trabalho, recebem aposentadorias miser�veis. O sucesso veio como
vocalista e compositor do grupo Legi�o Urbana, um dinossauro - 10 anos como
banda de rock/folk/pop o faz jur�ssico - que sobrevive com a pan�a cheia de
mais de quatro milh�es de discos vendidos. O trio da Legi�o se completa com o
guitarrista Dado Villa-Lobos e o baterista Marcelo Bonf�. Livres para cantar o
que quiserem e tamb�m para agir: cada qual realiza projetos solos de vez em
quando. Renato est� atualmente num deles: o disco Equil�brio
Distante. O disco � todo gravado em italiano, com a maior parte do repert�rio
pop daquele pa�s e apenas dois autores brasileiros: Lulu Santos e Tom Jobim. �
um trabalho diferente na vida de Renato Russo: as m�sicas s�o meio bregas. Ele
se diverte com a denomina��o porque sabe que, embora cante m�sicas de Laura
Paisini - "ela � como se fosse a Ang�lica dos italianos, toda mocinha"
- ou de Cl�udio Balcone - "uma esp�cie de F�bio Jr. de l�, s� que
mais roqueiro" -, por exemplo, seu vozeir�o e os excelentes arranjos
garantem um resultado de alta qualidade. "Quem quiser
Kiekgard, que leia o livro", diz ele, ao falar de sua postura atual. "Por
que eu n�o posso ter liberdade de abrir o peito e cantar '� o amoooooooooor'?"
Pode sim. Ali�s, se Caetano Veloso tivesse pensado assim, nunca teria se
arriscado a cantar - divinamente - a suposta brega "Sonhos", de Peninha.
"O que eu quero � justamente isso: dar valor a um estilo musical que n�o �
reconhecido. O disco n�o � brega, mas peguei o universo para trabalhar",
explica. Coincidentemente, Renato est� numa daquelas duas fases em que muito se
aprecia esse tipo de m�sica que fala, sem sutilezas, de cora��es dilacerados:
uma � quando se est� vivendo uma grande paix�o e, a outra, quando se leva um
p� no traseiro da pessoa amada. Ele est� inserido na segunda hip�tese. Depois
de aproximadamente dois anos, seu namorado deu um fim � rela��o da pior
maneira poss�vel. Despediu-se dizendo algo parecido com "Voc� �
bom demais para mim. Seja feliz". Irritante ouvir
isso: "P�, me diz que eu tenho mau h�lito, que n�o gosta dos meus amigos,
que n�o t� mais a fim, qualquer coisa, menos voc� � �timo e vamos ser
apenas amigos". A decis�o de falar abertamente sobre uma rela��o afetiva
com um homem foi tomada serenamente e n�o prejudicou ou ajudou a carreira da
Legi�o Urbana, segundo sua avalia��o. Simplesmente ele revelou algo que
julgava ser desonesto esconder de seu p�blico. E, hoje, quando Renato Russo
escreve e canta, por exemplo, "j� que voc� n�o est� mais aqui o que eu
posso fazer � cuidar de mim", n�o � vetado a ningu�m saber que ele se
refere a um outro homem assim como cada qual pode se utilizar da can��o da
forma que quiser, porque o sentimento � universal e assexual e a maneira de
senti-lo idem. "Revelar que
est� na contram�o da heterossexualidade normativa � uma decis�o dif�cil, �s
vezes. Cada pessoa tem a sua decis�o. Eu me abri porque senti que estava na
hora, que isso me daria mais liberdade no meu trabalho e tamb�m porque eu n�o
queria enrolar o jovem ou a jovem que estava ouvindo aquilo e sem saber se era
aquilo mesmo. N�o abrir o jogo seria desonesto com meu p�blico. Se eu canto
uma m�sica que fala, por exemplo, da sensa��o de diferen�a, de solid�o, ou
mesmo de uma felicidade que est� ligada a essa diferen�a afetiva, quem est�
ouvindo tem o direito de saber sobre o que estou falando. Mas tento escrever de
uma maneira que qualquer um possa se apossar da can��o", explica. Ele afirma que
sua clareza corajosa retorna em forma de respeito, tanto da parte de homo ou
heterossexuais. "Quando ou�o algu�m cantando quero saber que aquela
determinada m�sica foi feita para o que eu acho que foi mesmo. Por isso, achei
importante o Neil Tennant, do Pet Shop Boy,
ter falado claramente sobre sua homossexualidade, por exemplo". S� tem um
assunto em sua vida que ele n�o gosta de falar publicamente: seu filho,
Giuliano, de 6 anos. O motivo � simples: quer dar ao filho, produ��o
independente que vive em Bras�lia com os av�s, o sagrado direito de viver sua
pr�pria vida longe dos holofotes que pipocam em torno do pai famoso. N�o
disfar�a, entretanto, que Giuliano � o combust�vel essencial � sua alegria
de viver. Houve um tempo
em que Renato Russo tentou ser "normal". "Na adolesc�ncia voc� quer ser
aceito. Foi uma �poca muito complicada para mim. Eu sabia que era sedutor e,
como todo mundo, tamb�m aprendi os c�digos sociais para n�o me machucar.
Minhas melhores amigas de hoje v�m de uma �poca que eu estava tentando namorar
garotas para ver se deixava meus pais felizes, a sociedade feliz. Namorei
mulheres belas e interessantes. Uma delas foi a Denise Bandeira - posso dizer
porque sei que ela n�o se importa -, aquele mulher�o. Tentei, mas n�o deu
certo comigo. Entendi que poderia namorar a mulher mais bonita do mundo, mas
quando passasse um bofe atraente, com corpo cabeludo, hummmm. N�o deu, n�o d�."
Nesse seu plano falido de enganar a todos, houve obst�culos: "Consegui me dar
bem com mulheres fortes, sens�veis. Mas tive problemas com um certo tipo de
mulher, as muito presas a status quo, que me achavam um banana. Essas est�o
inseridas num grupo que acha que homem para ser macho tem que maltratar, ficar
em cima, declarar supremacia; no pacote, tem que vir isso. Como eu n�o me
adaptava de jeito nenhum, era um banan�o". As press�es
sociais come�aram, ent�o, a ser aliviadas com umas boas doses de bebida alco�lica,
como conta. "Aquela hist�ria: bebia porque sofria, depois sofria porque
bebia. E bebia muito para ser aceito, para que gostassem de mim. Sentia
inseguran�a, tomava umas doses, ficava espirituoso, virava o rei das pistas de
dan�a...". Forrest, isto �, Renato Russo, reconhece, hoje, que todo o esfor�o
que sempre fez em rela��o � banda e para ser �timo � uma esp�cie de
compensa��o pela inseguran�a brutal que sente at� hoje. Bom, agora j�
entramos em um outro cap�tulo triste da vida de Renato. "Passei 15 anos da
minha vida me destruindo com drogas e �lcool. Cheguei a um ponto que nada mais
me interessava, nada me dava prazer, eu estava que nem o Kurt Cobain, (do
Nirvana, que acabou se matando). Estava muito deprimido." Renato Russo era
considerado um jovem talentoso, tinha conseguido r�pido tudo o que sempre quis
na vida mas se sentia um miser�vel. "Tudo era conflitante; eu amava meu filho
desesperadamente e me sentia culpado. De manh�, quando eu sa�a para comprar o
jornal aproveitava para passar no boteco e bebia pra caramba. Voltava para casa
reclamando do mundo, achando tudo uma merda", confessa. O que o fez mudar?
"Medo de morrer", responde. Durante um tempo, ele pensou que o impulso para
dar um ponto final a essa vida foi o fato de estar magoando seus pais e o desejo
que seu filho n�o tivesse um pai suicida. No fim das contas, entretanto, ele
entendeu que foi mesmo o medo de acabar dentro de um caix�o. Hoje ele faz um
mapeamento n�tido de sua estrada em dire��o ao precip�cio. "Eu n�o saia
mais de casa, s� por obriga��o. Quando tinha que ir, por exemplo, � entrega
de algum pr�mio, ficava o dia inteiro me preparando justamente para aparecer
legal naquela vez e todo mundo achar que eu n�o tinha problema nenhum. Bebia
antes de sair para recusar polidamente as bebidas que poderiam ser servidas no
evento e enfiava a cara na garrafa quando voltava para casa. Estava inchado, mas
me olhava no espelho e dizia: estou gordinho, ningu�m vai perceber que n�o
estou bem". Ajudou - e muito - ter procurado grupos de alco�latras an�nimos
e a Vila Serena, uma esp�cie de spa para alma, em Santa Teresa. L�, ele come�ou
a parar de usar subterf�gios, como balas de hortel� permanentemente para que
ningu�m sentisse o bafo de cacha�a, e entendeu que alcoolismo � uma doen�a
cr�nica. "O pessoal de auto ajuda � uma coisa fabulosa. Lembro que freq�entei
reuni�es do grupo Arco-�ris, formado por gays, e era muito bom ver que as
pessoas se re�nem porque t�m um problema comum e a vontade comum de venc�-lo".
Nessas reuni�es de drogados/alco�latras/gays ele finalmente mudou seu conceito
em rela��o a si mesmo. "Vi que bebia e me drogava n�o por ser um
sem-vergonha, pervertido, vagabundo e sim porque era uma v�tima de uma doen�a
que ataca igualmente a socialite e o mendigo. A diferen�a � que a socialite
vai vomitar em tapetes persas e o mendigo, no esgoto. Mas se ambos contarem suas
hist�rias ser� rigorosamente a mesma". Hoje, o �nico v�cio
que Renato ainda conserva � o cigarro, e mesmo assim planeja cort�-lo. Em sua
csa n�o tem garrafa de u�sque, valium - rem�dio que ingeria junto com �lcool
-, maconha, hero�na, coca�na... coisas que utilizava, �s vezes, noites
inteiras, sozinho ou, em lugares como a Galeria Alaska, acompanhado de
prostitutas e mich�s. Os amigos que freq�entam seu apartamento, atualmente,
sabem o que o anfitri�o pode oferecer de bom: papo divertido e inteligente,
comidinhas saborosas, ch�s maravilhosos, sess�es de tar� e boa m�sica.
Durante o dia ele trabalha, l�, procura se alimentar direito e faz muito exerc�cio...
com o controle remoto. "Esse neg�cio
de caminhar, malhar, n�o � comigo", assume, pregui�oso. Um cuidado que ele
n�o dispensa de jeito nenhum � o uso de camisinha em todas as rela��es
sexuais. "Eu me comporto como se fosse soropositivo", diz. E �? "Isso �
problema meu, n�o abro", responde objetivamente e sem ser grosseiro. "Mas
conhe�o pessoas que s�o soropositivas e n�o tomam cuidado, se � isso que voc�
quer saber", completa. Renato lembra que j� passou a �poca de se supor que
os homossexuais comp�em o grupo de risco. Sabe-se hoje que esse � o grupo
sexual que menos tem engordado a l�gubre estat�stica mundial de contamina��o,
justamente porque se informaram e se protegem. "Ali�s, no Brasil � que n�o
d� mesmo para separar homo de hetero porque todo mundo sabe que brasileiro
adora bunda, sexo anal". Renato Russo, um
dos poucos artistas brasileiros que declara piblicamente ser gay s� podia ser,
por isso mesmo, um dos mais procurados para tudo quanto � campanha, evento etc
sobre Aids. Mas, dele tamb�m se sabe que � contra a viol�ncia, injusti�as
sociais, opress�es a minorias. E participar de variados tipos de eventos assim
tem sido uma das fomas que ele escolheu para colaborar com a sociedade. Para os
padr�es convencionais que medem n�vel de informa��o global, � quase um
alienado. Vive no Rio de Janeiro e n�o tem a m�nima id�ia, por exemplo, sobre
como est� a chamada Opera��o Rio, montada pelo Ex�rcito para combater a
criminalidade. Justifica-se: "Decidi tomar outras atitudes em vez de ficar
pensando na viol�ncia. Pode parecer demagogia, mas quando parei de me drogar
resolvi me limpar por inteiro. N�o vou ficar falando de Opera��o Rio e ficar
reclamando. Tento ter amizades verdadeiras, tento ser verdadeiro. Acredito em
vibra��o e creio que essa � uma forma de contribuir tamb�m". � militante
gay, mas sabe que existem muitas quest�es mais s�rias, importantes e tristes
para serem resolvidas no pa�s e lista problemas com idosos, crian�as, mis�ria,
fome, sa�de, educa��o... E alerta que uma dos erros que a comunidade gay
precisa tentar evitar � macaquear os preconceitos heterossexuais. "Na minha
opini�o, o gay � an�rquico, rebelde, tem uma sensibilidade diferente.
Casamento entre pessoas do mesmo sexo, para mim, n�o � uma quest�o
importante. Se querem casar, tudo bem. Agora, foram cinco mil anos de opress�o
heterossexual, quer repetir isso?", questiona. Por outro lado, reivindica a
prote��o legal a todo casal, hetero ou homo. "A uni�o tem que ser
reconhecida legalmente, tem que ter direito a heran�a, plano de sa�de etc. Da
mesma forma, a lei precisa rever suas normas quanto a av�s que criam netos, m�es
solteiras, por exemplo". Sua dificuldade
em moldar-se ao formato tradicional do casamento tem explica��o bem humorada:
"O que o padre vai falar? Voc� Jo�o Roberto se compromete a obedecer ao Z�
Carlos...? Quem vai ser homem, quem vai ser mulher? Quem vai ser o bofe que toma
conta da casa e quem vai ser a outra parte submissa? Comigo n�o funciona assim.
N�o quero estar com um cara que fique em casa cozinhando. Quando estou com algu�m,
um dia um cozinha, outro dia outro, porque ambos trabalhamos. Melhor ainda:
contratamos uma boa cozinheira e ningu�m fica com a obriga��o". Mas, como
est� sozinho atualmente, ele mesmo tem se virado com as panelas em casa. N�o
� a sua op��o preferida para viver, mas est� se dando um tempo para vencer a
atual fase de perda afetiva. "Estou num momento complicado, dif�cil, mas
estou sereno", afirma. E completa com uma frase que bem poderia ser a letra de
uma de sua pr�ximas m�sicas: "A dor � inevit�vel, mas o sofrimento �
opcional". |
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Skooter 1998 - 2008 |
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