Legi�o Urbana Uma Outra Esta��o
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(Veja - 16 de outubro de 1996 - Ano 29 n� 42) O rebelde se vai Com a morte de Renato Russo, o rock brasileiro perde um �dolo muito talentoso e sofrido Celso Masson e Okky de Souza
Renato Russo foi mais que um sobrevivente da explos�o do rock nacional dos anos 80. Autor de todas as letras do Legi�o Urbana e homem de frente nos shows da banda, ele desenvolveu uma not�vel habilidade para traduzir as emo��es e a inquietude dos jovens brasileiros de mais de uma gera��o. Seu p�blico atual n�o era feito de trint�es e quarent�es nost�lgicos, mas de adolescentes para os quais as mensagens de Russo continuavam a ser palavras de ordem. Em suas letras e interpreta��es, falava de amor como os jovens gostariam de saber falar. Bradava contra a mis�ria familiar como seu p�blico gostaria de fazer na sala de jantar de casa. E, quando virava seu olhar para o governo e os pol�ticos, enunciava opini�es �s vezes ing�nuas, mas sempre raivosas. Esse era o segredo de sua popularidade. Renato Russo soube que era portador do v�rus da Aids em 1989, mas a doen�a s� come�ou a se manifestar neste ano. At� janeiro passado, p�de levar uma vida normal e sa�a com os amigos. Depois, passou a contrair uma s�rie de infec��es oportunistas. Foi internado v�rias vezes com hepatite e males respirat�rios. Em maio, come�ou a ingerir o coquetel AZT e outros medicamentos que hoje costumam ser ministrados aos pacientes terminais. Costuma dizer que o coquetel � quase t�o ruim quanto alguns sintomas da doen�a. "Quando o tomo, � como se eu estivesse comendo um cachorro vivo e ele me comesse por dentro", desabafou a um amigo. Por conta de uma profunda depress�o, passou a ser acompanhado por um psiquiatra, que nos �ltimos tempos intensificou o tratamento com medicamentos.
Solit�rio, poucas vezes sa�a do quarto. Precisava de ajuda para andar e vomitava quase tudo que comia. Apesar disso, tentava reagir e estava compondo o que anunciava ser uma �pera. Na ter�a feira, recebeu a visita do m�sico Dado Villa-Lobos, guitarrista do Legi�o Urbana, e de seu empres�rio Rafael Borges. Disse a eles que n�o estava bem, sentindo-se sozinho, mas recusava-se a falar da doen�a ou da morte que a todos parecia iminente. "Sua sa�de vinha definhando nos �ltimos tr�s meses, mas na �ltima semana ele piorou muito", diz o m�dico Saul Bteshe, um dos que assinaram o atestado de �bito do compositor. H� dois meses, um jornalista de Bras�lia, Geraldinho Vieira, 37 anos, esteve no apartamento de Renato Russo, onde ficou a tarde inteira. Os dois tinham uma amizade antiga. Geraldinho foi casado com Lea Coimbra, a artista pl�stica que inspirou o compositor a fazer a personagem M�nica, da m�sica Eduardo e M�nica, o primeiro grande sucesso do grupo. "Ele estava magro, muito cansado, mas o c�rebro funcionava bem", recorda Vieira. Ele lembra que durante toda a tarde Renato Russo fumou apenas dois cigarros. O compositor j� sabia que seu estado era terminal, mas era capaz de manter a conversa��o num tom controlado, explicando que queria "aproveitar ao m�ximo esse momento para aprender com a pr�pria vida e com a morte". Pelas lembran�as de Vieira, Renato Russo dizia essas coisas de forma "tranq�ila e triste". Esbo�ando uma esp�cie de balan�o da pr�pria vida e tamb�m da carreira, disse que "o sucesso faz aparecer muita gente em volta de voc�. Empres�rios, artistas. Mas me sinto s�". Enfraquecido pela doen�a, seu �nimo apresentava um quadro de altos e baixos. H� quatro meses, quando terminou a grava��o de A Tempestade, disse ao m�sico e produtor Renio Quintas que estava "saindo de uma mar� braba, mas que agora estou legal". Ele se dizia feliz porque finalmente havia conseguido parar de beber e que, ap�s ser internado numa cl�nica, se sentia bem melhor. Na mesma �poca, o ator Marcelo Ber� apareceu para uma visita, quando o ouviu queixando-se de seus �ltimos discos n�o haviam sido bem compreendidos. "Eu sou o mensageiro do bem" disse. Russo tinha um arm�rio cheio de manuscritos, uma esp�cie de di�rio, em grande parte escrito em ingl�s. "Vou escrever um livro quando chegar aos 50", anunciou, num momento de maior alegria. "No fundo eu quero ser imortal". Parte do fasc�nio que Renato Russo exercia sobre o p�blico vinha tamb�m das confus�es que marcaram a carreira de seu conjunto, t�picas da melhor est�tica rock'n'roll. O Legi�o Urbana foi formado em Bras�lia, mas, na primeira vez que o grupo tocou na cidade depois de consagrado nacionalmente, o show acabou num quebra-quebra com um punhado de feridos e um Renato Russo transtornado, xingando a plat�ia. Em 1990, o compositor desmaiou no palco e teve de cancelar outras apresenta��es. O comportamento de Renato Russo tamb�m contribu�a para desenhar a imagem do Legi�o de um grupo inesperado, com o qual tudo podia acontecer. Russo, na verdade, era uma personalidade bem mais complexa do que qualquer dos personagens que criou em suas letras, e teve uma vida mais atribulada do que as hist�rias contadas em seus discos. Ele era alco�latra desde a adolesc�ncia. Chegou a freq�entar sess�es dos Alco�licos An�nimos e passava per�odos de abstin�ncia. Neles, chegava a repreender quem estivesse bebendo perto dele - mas ele mesmo sempre voltava ao copo. Um amigo seu conta que, em sua �ltima festa de anivers�rio, em mar�o deste ano, ele serviu aos convidados apenas refrigerantes, mas escondia-se pela casa para sorver goles de bebida forte. O ator e diretor teatral S�rgio Britto, que costumava emprestar fitas de v�deo para Russo, lembra que, da �ltima vez em que se encontraram, ficou triste por v�-lo b�bado e balbuciando coisas como "o amor � a �nica coisa que vale na vida". "Ele era um rapaz muito machucado pela vida", diz Britto. Russo teve tamb�m experi�ncias amargas com as drogas, inclusive, durante um m�s, com a mais devastadora delas, a hero�na.
Pessoas pr�ximas t�m como certo que ele tentou o suic�dio duas outras vezes. A primeira, em 1984, quando o Legi�o Urbana teve o seu primeiro contrato rescindido pela gravadora EMI. Na ocasi�o, Renato Russo brigou com a gravadora por causa do arranjo a ser feito para a m�sica Gera��o Coca-Cola. A briga teria coincidido com o rompimento de um namoro antigo que ele mantinha com uma mulher casada. Russo cortou os pulsos e foi encontrado pela fam�lia, ensang�entado, chorando dentro da banheira. O guitarrista Kadu Lambach, que integrou o Legi�o em seus prim�rdios, conta que foi visit�-lo na ocasi�o e viu curativos nos pulsos - mas n�o achou conveniente perguntar a origem do ferimento. A segunda tentativa de suic�dio teria ocorrido quando Russo soube que era portador do v�rus da Aids.
Renato Manfredini Junior, o Russo, nasceu no Rio de Janeiro, na Ilha do Governador. Dos 7 aos 10 anos ele morou em Nova York, onde seu pai passou um per�odo a servi�o do Banco do Brasil. Na volta, a fam�lia se estabeleceu no Rio e tr�s anos depois se mudou para Bras�lia. Russo tinha ent�o 13 anos. Com o ingl�s que aprendera nos Estados Unidos, aos 15 ele come�ou a trabalhar como monitor e em seguida professor na Cultura Inglesa. Pouco depois, conheceria o primeiro grande rev�s em sua vida. Ele contraiu epifisi�lise, doen�a que afeta a extremidade dos ossos, deixando-os fr�geis. Submeteu-se a uma cirurgia para implanta��o de um pino de metal no f�mur, mas, segundo contava, foi v�tima de erro m�dico. O cirurgi�o teria colocado o pino encostado no nervo, o que lhe causava dores horr�veis. Russo passou dois anos entre a cama e a cadeira de rodas. J� recuperado, formou seu primeiro grupo, batizado de Aborto El�trico, que seria o embri�o do Legi�o Urbana e de sua carreira vitoriosa. Poesia e contesta��o se fundem num resultado muitas vezes desconcertante na obra deixada por Renato Russo. Para dar vaz�o a seu universo conflituoso, Renato tomou emprestados versos de Cam�es, descreveu amores absurdos, passou li��es de moral. �s vezes foi tamb�m repetitivo e at� um pouco canastr�o. Mas sempre manteve o controle sobre sua carreira, indiferente ao mito criado pelo fan�tico p�blico da banda que ele liderou. O Legi�o Urbana era do contra - vendeu seus 5 milh�es de discos sem nunca ter adotado procedimentos recorrentes da ind�stria fonogr�fica. Jamais quis tocar em festivais patrocinados por grandes empresas. Rar�ssimas vezes compareceu a programas de audit�rio em que seus colegas de profiss�o batem cart�o para empurrar as vendas de discos. Raramente fazia shows e dava de ombros para os g�neros musicais em voga no mercado. N�o usava o surrado recurso baiano de inventar pol�micas na imprensa sempre que lan�ava um disco. Adotou uma postura que nenhum outro artista ou grupo arriscaria. Talvez por isso tenha preservado sua autenticidade e carisma.
Depois de se ter estabelecido como uma refer�ncia fundamental do rock brasileiro, Renato p�de dar asas a convic��es mais pessoais. Sem desmantelar o Legi�o Urbana, gravou dois discos de sucesso. O primeiro, Stonewall Celebration, de 1994, � todo cantado em ingl�s e marca os 25 anos de um levante homossexual ocorrido em Nova York. Metade daquilo que o disco faturou foi doada � campanha contra a fome do soci�logo Betinho. No ano passado, lan�ou Equil�brio Distante, no qual canta em italiano. O disco vendeu 544 000 c�pias, forneceu tema para uma telenovela e ainda est� tocando nas r�dios, como um r�quiem para o �ltimo rebelde do rock brasileiro. Com reportagem de Sandra Brasil (Bras�lia) e Marcelo Camacho (Rio de Janeiro) Estou mal e eu n�o posso mais nem falar. Quando eu tomo o coquetel (de AZT e outros)
� como se tivesse comendo um cachorro vivo. E o cachorro me come por dentro. A morte est� perto e quero aproveitar ao
m�ximo este momento para aprender com a pr�pria vida e com a morte. Depois desse trabalho (referindo-se ao
�ltimo disco, Tempestade), eu quero descansar. Quando chegar aos 50 anos, vou escrever meu
livro. No encarte do �ltimo disco, Renato insinua sua despedida citando versos de Oswald de Andrade: O Brasil � uma / rep�blica federativa / cheia de �rvores / e gente dizendo adeus Agradecimentos: Jean Campagner, pela revista. |
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Skooter 1998 - 2008 |
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