Legi�o Urbana Uma Outra Esta��o
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CAPA: MORRE UM REBELDE
A Aids leva Renato Russo

(Veja - 16 de outubro de 1996 - Ano 29 n� 42)

O rebelde se vai

Com a morte de Renato Russo, o rock brasileiro perde um �dolo muito talentoso e sofrido

Celso Masson e Okky de Souza

Na tarde de domingo passado, o telefone tocou no apartamento do cantor e compositor Renato Russo, l�der da banda Legi�o Urbana, em Ipanema. Ele atendeu. Do outro lado da linha estava o ator Marcelo Ber�, querendo saber not�cias do amigo. "Estou mal e eu n�o posso mais nem falar" disse-lhe Russo com um fiapo de voz e passou o fone para o enfermeiro que estava ao seu lado. Na sexta-feira passada, o corpo de Russo era transportado do apartamento para o cemit�rio do Caju, onde, conforme as instru��es que dera � fam�lia, seria cremado no s�bado. Renato Russo morreu � 1:15h da madrugada de sexta-feira, v�tima de complica��es pulmonares e renais decorrentes da Aids. Aos 36 anos, desapareceu como um dos mais bem-sucedidos artistas da MPB dos �ltimos quinze anos, com 5 milh�es de discos vendidos. Calava-se o artista rebelde que com versos e rock nomeou a sujeira e o vazio de sua �poca.

Renato Russo foi mais que um sobrevivente da explos�o do rock nacional dos anos 80. Autor de todas as letras do Legi�o Urbana e homem de frente nos shows da banda, ele desenvolveu uma not�vel habilidade para traduzir as emo��es e a inquietude dos jovens brasileiros de mais de uma gera��o. Seu p�blico atual n�o era feito de trint�es e quarent�es nost�lgicos, mas de adolescentes para os quais as mensagens de Russo continuavam a ser palavras de ordem. Em suas letras e interpreta��es, falava de amor como os jovens gostariam de saber falar. Bradava contra a mis�ria familiar como seu p�blico gostaria de fazer na sala de jantar de casa. E, quando virava seu olhar para o governo e os pol�ticos, enunciava opini�es �s vezes ing�nuas, mas sempre raivosas. Esse era o segredo de sua popularidade.

Renato Russo soube que era portador do v�rus da Aids em 1989, mas a doen�a s� come�ou a se manifestar neste ano. At� janeiro passado, p�de levar uma vida normal e sa�a com os amigos. Depois, passou a contrair uma s�rie de infec��es oportunistas. Foi internado v�rias vezes com hepatite e males respirat�rios. Em maio, come�ou a ingerir o coquetel AZT e outros medicamentos que hoje costumam ser ministrados aos pacientes terminais. Costuma dizer que o coquetel � quase t�o ruim quanto alguns sintomas da doen�a. "Quando o tomo, � como se eu estivesse comendo um cachorro vivo e ele me comesse por dentro", desabafou a um amigo. Por conta de uma profunda depress�o, passou a ser acompanhado por um psiquiatra, que nos �ltimos tempos intensificou o tratamento com medicamentos.

Russo nunca tornou p�blica sua doen�a. H� quatro meses, mesmo debilitado, concluiu as grava��es do novo disco do Legi�o Urbana. A Tempestade, que chegou �s lojas h� tr�s semanas. Depois disso, recusou-se a posar para fotos de divulga��o do disco ou a conceder entrevistas - a essa altura, j� havia perdido 20 dos 65 quilos que sempre pesou. Ele passou as �ltimas semanas em casa, onde foi montado um pequeno hospital dom�stico. Era acompanhado por uma equipe de enfermeiros e por seu pai, Renato Manfredini, alto funcion�rio aposentado do Banco do Brasil.

Solit�rio, poucas vezes sa�a do quarto. Precisava de ajuda para andar e vomitava quase tudo que comia. Apesar disso, tentava reagir e estava compondo o que anunciava ser uma �pera. Na ter�a feira, recebeu a visita do m�sico Dado Villa-Lobos, guitarrista do Legi�o Urbana, e de seu empres�rio Rafael Borges. Disse a eles que n�o estava bem, sentindo-se sozinho, mas recusava-se a falar da doen�a ou da morte que a todos parecia iminente. "Sua sa�de vinha definhando nos �ltimos tr�s meses, mas na �ltima semana ele piorou muito", diz o m�dico Saul Bteshe, um dos que assinaram o atestado de �bito do compositor.

H� dois meses, um jornalista de Bras�lia, Geraldinho Vieira, 37 anos, esteve no apartamento de Renato Russo, onde ficou a tarde inteira. Os dois tinham uma amizade antiga. Geraldinho foi casado com Lea Coimbra, a artista pl�stica que inspirou o compositor a fazer a personagem M�nica, da m�sica Eduardo e M�nica, o primeiro grande sucesso do grupo. "Ele estava magro, muito cansado, mas o c�rebro funcionava bem", recorda Vieira. Ele lembra que durante toda a tarde Renato Russo fumou apenas dois cigarros. O compositor j� sabia que seu estado era terminal, mas era capaz de manter a conversa��o num tom controlado, explicando que queria "aproveitar ao m�ximo esse momento para aprender com a pr�pria vida e com a morte". Pelas lembran�as de Vieira, Renato Russo dizia essas coisas de forma "tranq�ila e triste". Esbo�ando uma esp�cie de balan�o da pr�pria vida e tamb�m da carreira, disse que "o sucesso faz aparecer muita gente em volta de voc�. Empres�rios, artistas. Mas me sinto s�".

Enfraquecido pela doen�a, seu �nimo apresentava um quadro de altos e baixos. H� quatro meses, quando terminou a grava��o de A Tempestade, disse ao m�sico e produtor Renio Quintas que estava "saindo de uma mar� braba, mas que agora estou legal". Ele se dizia feliz porque finalmente havia conseguido parar de beber e que, ap�s ser internado numa cl�nica, se sentia bem melhor. Na mesma �poca, o ator Marcelo Ber� apareceu para uma visita, quando o ouviu queixando-se de seus �ltimos discos n�o haviam sido bem compreendidos. "Eu sou o mensageiro do bem" disse. Russo tinha um arm�rio cheio de manuscritos, uma esp�cie de di�rio, em grande parte escrito em ingl�s. "Vou escrever um livro quando chegar aos 50", anunciou, num momento de maior alegria. "No fundo eu quero ser imortal".

Parte do fasc�nio que Renato Russo exercia sobre o p�blico vinha tamb�m das confus�es que marcaram a carreira de seu conjunto, t�picas da melhor est�tica rock'n'roll. O Legi�o Urbana foi formado em Bras�lia, mas, na primeira vez que o grupo tocou na cidade depois de consagrado nacionalmente, o show acabou num quebra-quebra com um punhado de feridos e um Renato Russo transtornado, xingando a plat�ia. Em 1990, o compositor desmaiou no palco e teve de cancelar outras apresenta��es. O comportamento de Renato Russo tamb�m contribu�a para desenhar a imagem do Legi�o de um grupo inesperado, com o qual tudo podia acontecer. Russo, na verdade, era uma personalidade bem mais complexa do que qualquer dos personagens que criou em suas letras, e teve uma vida mais atribulada do que as hist�rias contadas em seus discos.

Ele era alco�latra desde a adolesc�ncia. Chegou a freq�entar sess�es dos Alco�licos An�nimos e passava per�odos de abstin�ncia. Neles, chegava a repreender quem estivesse bebendo perto dele - mas ele mesmo sempre voltava ao copo. Um amigo seu conta que, em sua �ltima festa de anivers�rio, em mar�o deste ano, ele serviu aos convidados apenas refrigerantes, mas escondia-se pela casa para sorver goles de bebida forte. O ator e diretor teatral S�rgio Britto, que costumava emprestar fitas de v�deo para Russo, lembra que, da �ltima vez em que se encontraram, ficou triste por v�-lo b�bado e balbuciando coisas como "o amor � a �nica coisa que vale na vida". "Ele era um rapaz muito machucado pela vida", diz Britto. Russo teve tamb�m experi�ncias amargas com as drogas, inclusive, durante um m�s, com a mais devastadora delas, a hero�na.

O sexo, para o compositor, foi tamb�m uma fonte de experi�ncias, sofridas. At� 1989 ele se declarava heterossexual, tinha namoradas - como a atriz Denise Bandeira - e levava tietes para quartos de hot�is depois dos shows. No ano seguinte, para surpresa at� dos amigos, ele passou a se declarar homossexual e a escolher apenas parceiros do mesmo sexo. Sustentou que mantinha rela��es com mulheres apenas para satisfazer a fam�lia e a sociedade, mas que desde a adolesc�ncia sentia atra��o por homens. Segundo ele pr�prio admitiu, mantinha uma vida sexual prom�scua, levanto at� meia d�zia de rapazes ao mesmo tempo para passar uma temporada em seu apartamento. Em 1990 conheceu em San Francisco, nos Estados Unidos, aquele que seria seu parceiro mais duradouro, Robert Scott. No ano seguinte, Scott mudou-se para o Brasil e passou a morar com Russo, mas foi embora em 1992. Segundo um amigo de Russo, o compositor entrou em depress�o profunda e tentou suicidar-se.

Pessoas pr�ximas t�m como certo que ele tentou o suic�dio duas outras vezes. A primeira, em 1984, quando o Legi�o Urbana teve o seu primeiro contrato rescindido pela gravadora EMI. Na ocasi�o, Renato Russo brigou com a gravadora por causa do arranjo a ser feito para a m�sica Gera��o Coca-Cola. A briga teria coincidido com o rompimento de um namoro antigo que ele mantinha com uma mulher casada. Russo cortou os pulsos e foi encontrado pela fam�lia, ensang�entado, chorando dentro da banheira. O guitarrista Kadu Lambach, que integrou o Legi�o em seus prim�rdios, conta que foi visit�-lo na ocasi�o e viu curativos nos pulsos - mas n�o achou conveniente perguntar a origem do ferimento. A segunda tentativa de suic�dio teria ocorrido quando Russo soube que era portador do v�rus da Aids.

Renato Russo deixa um filho, Giuliano, de 7 anos. O compositor se negava sistematicamente at� mesmo a revelar a identidade da m�e do menino, admitindo apenas que era uma pessoa com quem tivera apenas um relacionamento fugaz, por uma, duas ou no m�ximo tr�s noites. Sabe-se que ela era uma modelo paulista, morta num acidente automobil�stico quando Giuliano tinha apenas 1 ano. J� sobre o filho, Russo gostava de falar. Uma de suas principais preocupa��es era alert�-lo para o fato de que, por ter um pai assumidamente homossexual, ele poderia ser alvo de cenas desagrad�veis na escola. Giuliano sempre morou com os pais de Renato Russo, em Bras�lia. O compositor ficava contrariado porque o menino chama os av�s de papai e mam�e, enquanto para Russo, que o visitava em m�dia a cada tr�s meses, era reservado o tratamento de titio. "� como se eu fosse o irm�o mais velho", explicou o compositor numa entrevista � jornalista Maria Helena Passos.

Renato Manfredini Junior, o Russo, nasceu no Rio de Janeiro, na Ilha do Governador. Dos 7 aos 10 anos ele morou em Nova York, onde seu pai passou um per�odo a servi�o do Banco do Brasil. Na volta, a fam�lia se estabeleceu no Rio e tr�s anos depois se mudou para Bras�lia. Russo tinha ent�o 13 anos. Com o ingl�s que aprendera nos Estados Unidos, aos 15 ele come�ou a trabalhar como monitor e em seguida professor na Cultura Inglesa. Pouco depois, conheceria o primeiro grande rev�s em sua vida. Ele contraiu epifisi�lise, doen�a que afeta a extremidade dos ossos, deixando-os fr�geis. Submeteu-se a uma cirurgia para implanta��o de um pino de metal no f�mur, mas, segundo contava, foi v�tima de erro m�dico. O cirurgi�o teria colocado o pino encostado no nervo, o que lhe causava dores horr�veis. Russo passou dois anos entre a cama e a cadeira de rodas. J� recuperado, formou seu primeiro grupo, batizado de Aborto El�trico, que seria o embri�o do Legi�o Urbana e de sua carreira vitoriosa.

Poesia e contesta��o se fundem num resultado muitas vezes desconcertante na obra deixada por Renato Russo. Para dar vaz�o a seu universo conflituoso, Renato tomou emprestados versos de Cam�es, descreveu amores absurdos, passou li��es de moral. �s vezes foi tamb�m repetitivo e at� um pouco canastr�o. Mas sempre manteve o controle sobre sua carreira, indiferente ao mito criado pelo fan�tico p�blico da banda que ele liderou. O Legi�o Urbana era do contra - vendeu seus 5 milh�es de discos sem nunca ter adotado procedimentos recorrentes da ind�stria fonogr�fica. Jamais quis tocar em festivais patrocinados por grandes empresas. Rar�ssimas vezes compareceu a programas de audit�rio em que seus colegas de profiss�o batem cart�o para empurrar as vendas de discos. Raramente fazia shows e dava de ombros para os g�neros musicais em voga no mercado. N�o usava o surrado recurso baiano de inventar pol�micas na imprensa sempre que lan�ava um disco. Adotou uma postura que nenhum outro artista ou grupo arriscaria. Talvez por isso tenha preservado sua autenticidade e carisma.

Renato Russo escreveu alguns dos hinos da gera��o roqueira dos anos 80. Ser�, m�sica tocada em literalmente todos os shows do Legi�o Urbana, por exig�ncia dos f�s, Ainda � Cedo, Tempo Perdido, Pais e Filhos e uma dezena de outras can��es que arrebataram o cora��o dos estudantes. O estilo musical do grupo foi definido no �lbum Dois, de 1986. O disco vendeu mais de 1 milh�o de c�pias e emplacou v�rios sucessos nas r�dios, obrigando as emissoras a colocar no ar uma m�sica de quase oito minutos - Eduardo e M�nica -, o que � totalmente fora dos padr�es radiof�nicos. Se com o grito de protesto Renato excitou a juventude, sua maior contribui��o viria com a maturidade de seus versos. Isso fica claro no disco As Quatro Esta��es, de 1989. � nele que est�o as letras mais densas de Renato, e tamb�m onde ele revela suas fontes de inspira��o - um an�nimo hindu, a B�blia, Bukkyo Dendo Kyokai, Lu�s de Cam�es, entre outros. "O resultado da m�sica que ele fez sobre o soneto de Cam�es � bel�ssimo, al�m de ser um procedimento pouco usual no ambiente do rock", diz o compositor e professor de letras Jos� Miguel Wisnik.

Depois de se ter estabelecido como uma refer�ncia fundamental do rock brasileiro, Renato p�de dar asas a convic��es mais pessoais. Sem desmantelar o Legi�o Urbana, gravou dois discos de sucesso. O primeiro, Stonewall Celebration, de 1994, � todo cantado em ingl�s e marca os 25 anos de um levante homossexual ocorrido em Nova York. Metade daquilo que o disco faturou foi doada � campanha contra a fome do soci�logo Betinho. No ano passado, lan�ou Equil�brio Distante, no qual canta em italiano. O disco vendeu 544 000 c�pias, forneceu tema para uma telenovela e ainda est� tocando nas r�dios, como um r�quiem para o �ltimo rebelde do rock brasileiro.

Com reportagem de Sandra Brasil (Bras�lia) e Marcelo Camacho (Rio de Janeiro)

Estou mal e eu n�o posso mais nem falar.
Renato Russo, ao telefone com um amigo, domingo passado, cinco dias antes de sua morte.

Quando eu tomo o coquetel (de AZT e outros) � como se tivesse comendo um cachorro vivo. E o cachorro me come por dentro.
Renato Russo, h� um m�s

A morte est� perto e quero aproveitar ao m�ximo este momento para aprender com a pr�pria vida e com a morte.
Renato Russo, h� dois meses

Depois desse trabalho (referindo-se ao �ltimo disco, Tempestade), eu quero descansar.
Renato Russo, em julho passado

Quando chegar aos 50 anos, vou escrever meu livro.
Renato Russo, em janeiro passado.

No encarte do �ltimo disco, Renato insinua sua despedida citando versos de Oswald de Andrade: O Brasil � uma / rep�blica federativa / cheia de �rvores / e gente dizendo adeus

Agradecimentos: Jean Campagner, pela revista.

 

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