Legião Urbana Uma Outra Estação
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NUNCA
FUI SANTO O músico
Renato Russo se diz homossexual, conta que largou
as drogas e critica a imprensa que glorificou a dor
do roqueiro Kurt Cobain Há
dez anos eles surgiram no Planalto Central e conquistaram os adolescentes de
todo o País, cantando músicas que se tornaram hinos de uma geração, Não
havia rádio que não tocasse sem parar o refrão "Somos os filhos da
revolução/somos burgueses sem religião/somos o futuro da nação/geração
Coca-Cola". Seis discos depois e 33 milhões de cópias
vendidas, o Legião Urbana - sem o baixista Renato Rocha, que abandonou o grupo
depois do terceiro álbum - continua arrebatando corações adolescentes. O
maior responsável por isso é o líder da banda, o letrista e vocalista Renato
Russo, nascido Renato Manfredini Jr., há 34 anos, no Rio de janeiro.
Ex-professor de Inglês, ex-jornalista, Renato Russo é um personagem polêmico:
já foi acusado de ter incitado o público a depredar o Estádio Mané
Garrincha, em Brasília, em 1988, já desmaiou num palco em Belo Horizonte, em
1990, e já foi expulso por seguranças quando tentava, embriagado, entrar
no camarim do grupo Emerson, Lake & Palmer, em 1993, no Rio. Mas nenhum
desses episódios é capaz de ofuscar o talento nem aplacar a coragem de Renato,
principalmente quando defende abertamente bandeiras ainda tão difíceis
no Brasil, como o homossexualismo. Pai de Giuliano, um menino de cinco anos,
Renato abre o jogo nesta entrevista
a ISTO É: conta a sua luta contra
o alcoolismo, critica duramente a imprensa, responsável pela "glamourização
excessiva do rock"; e fala sobre o disco solo, só com músicos em inglês,
que deverá ser lançado em junho. O álbum terá 21 músicas e vão de Bob
Dylan a lrving Berlin, de Cole Porter a Madonna. É uma homenagem pessoal de
Renato aos 25 anos de Stone Wall, o bar de Nova York onde gays americanos pela
primeira vez enfrentaram a polícia em defesa de seus direitos. O dinheiro
arrecadado com as vendas do álbum será revertido para a campanha do Betinho. ISTO É - O Sr. acaba de
gravar um disco sem o Legião Urbana. Seria o início de uma carreira solo?. Renato
Russo - Não estou lançando uma carreira solo. Este disco foi feito
especificamente para a campanha do Betinho e para comemorar os 25 anos do
concerto de Stone Wall. Eu tenho ficado assustado com a irresponsabilidade da
imprensa no Brasil que tem veiculado certas notícias como esta. Existe uma rixa
entre os cadernos culturais do Rio que é uma coisa perniciosa, improdutiva e
prejudicial ao leitor. É uma mentalidade medíocre, uma coisa ressentida. Acho
que se algumas pessoas não gostam do Brasil e querem estarem Nova York, devem
ir para lá. Mas não, ficam escrevendo sobre os clubbers de Manchester ou que a
droga da moda é essa ou aquela. Quer coisa mais irresponsável do que esta,
quando temos no Rio de Janeiro famílias inteiras morrendo por causa do tráfico
de drogas? Agora, o Kurt Cobain se matando no palco, dando um vexame - qualquer
pessoa normal via que aquele rapaz estava sofrendo -, os jornais vão lá e dão
nota dez, porque é um grande show de rock 'n 'roll. Essas pessoas precisam ter
suas cabeças examinadas. Como não quero criar polêmica, preferi fazer um
disco. Escolhi fazer um disco só com canções em inglês para não confundir
com o trabalho do Legião. São canções de amor, eu cantando para um outro
cara. ISTO É -
Quando e como foi que o sr. resolveu assumir publicamente sua
homossexualidade? Russo
- Foi em 1988. Faço parte uma minoria, que não é tão minoria assim, ainda
mais neste país. Me considero pansexual, mas sou o que as pessoas chamariam de
homossexual. O que acontece nesse país é o seguinte: se você tem uma
postura de homem, você não é considerado homossexual. Chegam pessoas para mim
e dizem [com a voz afetada] "não Renato, você não é gay, você não
desmunheca". Tá bom. Desde quando eu preciso botar uma peruca e sair
rebolando? Isso porque somos uma sociedade católica, machista e falocrata.
Tenho amigos muito educados que são heterossexuais mesmo, casados, mas todo
mundo acha que eles são bichas. Mas conheço um monte desses garotões fortões
que nunca ninguém vai dizer que é. Mas são. Então, isso faz parte da minha
vida. Não é um problema. É importante falar sobre isso. Se eu fizesse parte
de outra minoria e se existissem coisas que me incomodassem, acho que, tendo a
posição de artista, eu falaria. Não é para ser politicamente correto ou para
chama atenção. Já tive namorada, já tive filho, mas gosto de hoje poder
cantar uma música de Bob Dylan dizendo "lf you see him" em vez de
"If you see her" ("Se você o vir" em vez de "Se você a vir") ISTOÉ - Poderia falar
mais sobre seus relacionamentos? Renato
Russo - Saí agora de um relacionamento de dois anos que mexeu profundamente
comigo. Acho que vou ficar uns dez anos escrevendo músicas de amor, do tipo
"meu amor partiu". Por isso, resolvi fazer o que sei: cantar e lançar
um disco. É a maneira que eu tenho para lutar contra o fascismo, que está
voltando. Minha participação é ser um exemplo. Quanto mais gente perceber que
as pessoas podem ter uma orientação sexual diferente da norma - e por serem
diferente; da norma não são anormais ou doentias - e que podem ter uma vida
digna, estou satisfeito. [Engrossa a voz] Cara, eu me considero muito macho,
entendeu? Tenho 34 anos, casa própria, sou super-responsável, cumpro meus
compromissos, não roubo, não minto, não mato e tenho amigos que me dão força.
Tenho meus defeitos também, porque não sou santo, mas participo ativamente da
vida de meu país. Para mim, ser homem não é sair dando portada nas pessoas,
como ser mulher não é ser submissa, ficar em casa segurando o chinelinho para
o marido. É preciso parar com o sexismo e ver que aquilo que existe é a
dignidade do ser humano. ISTO É - O sr. tem medo
da Aids? Como lida com ela? Renato
Russo - Uso camisinha direto desde 1986. Qualquer pessoa que tem vida sexual
ativa está no grupo de risco. ISTO É - O Legião
Urbana já passou por diversas fases desde a sua criação. Como o sr. vê a
banda hoje? Renato
Russo - Por sorte e também por causa do nosso trabalho, nós conseguimos
continuar numa posição de destaque dentro da linha que seguimos. Depois de dez
anos, nosso trahalho continua sendo bem aceito pelo público. O primeiro disco
continua atual. Dentro do que é o trabalho do Legião Urbana, não existe muito
espaço para maiores novidades, principalmente porque nós falamos de nossas
vidas e não existe muita novidade nelas. O que existe é uma certa maturidade.
Eu não sou mais adolescente. Tenho 34 anos, o Bonfá e o Dado estão com 30.
Isso significa que temos filhos e outras responsabilidades. Eu não fico mais em
casa ouvindo rock'n'roli sentado no chão com meus amigos. ISTO É - Quando
afirma que não existe mais espaço para muitas novidades, o sr. está de alguma
forma admitindo que o Legião pode estar sendo repetitivo? O sr. tem esse
receio? Renato
Russo - Não, porque nós somos muito talentosos. Se fosse para ser repetitivo,
já no primeiro disco a gente teria músicas repetitivas. A questão não é
esta. O que existe é uma tentativa de ser o mais variado possível dentro de
uma situação que permanece a mesma. No caso, em se tratando da questão social
do País, a situação nem é a mesma; está pior. Quando o Legião Urbana começou
eu tinha 20 e poucos anos e acreditava em coisas que não acredito mais. Hoje
acredito mais na mudança interior das pessoas. ISTO É - Até cinco
anos atrás, essa geração do chamado rock Brasil, que inclui Legião Urbana,
Paralamas do Sucesso e Titãs, tinham muito mais força e projeção. O que
mudou? Renato
Russo - Acho que mudou o público. O público que tinha 20 anos hoje tem 30. E a
gente está falando de rock. O Legião tem um público de pessoas muito novas.
Nunca seguimos uma moda. Não fazemos rock porque é moda. Pode ser que tenha
passado um momento, que foi o da descoberta pela imprensa, de empatia e de
grandes shows. Mas eu não gosto de fazer grandes shows. Não me satisfaz.
Interfere na minha privacidade, em como me vejo como artista e cidadão. Também
não fazemos televisão, mas continuamos
tocando. Pode ser que não estejamos na lista dos dez primeiros, mas estamos
entre os 20. Com vendas é a mesma coisa. O rock é isso: atingir o coração
das pessoas, não é anúncio de iogurte. ISTO E - Há toda uma geração de músicos cinquentões no Brasil e
no Exterior que continua fazendo
grande sucesso e ocupando amplo espaço na mídia. Falta renovação? Renato
Russo - ISSO é uma questão de talento e maturidade. Esse pessoal conseguiu
sobreviver aos anos 60. Eles têm uma força muito especial. Música não tem
idade. E as pessoas esquecem de uma coisa fundamental: essa geração, que hoje
está com 30 anos, foi a primeira, depois da abertura dos anos 60, a entrar em
todas as áreas. O pessoal de publicidade, teatro, cinema, poesia, vídeo,
alguns jornalistas. Antes da geração do Chico, Caetano e Eric Clapton isso não
existia. O que temos hoje é que muitas pessoas estão indo por outras áreas,
inclusive para uma participação política. Os anos 60 foram uma época
especial. É a mesma coisa que dizer que depois dos anos 40 não apareceu mais
nenhum grande compositor clássico. Claro que não. Por quê? Não sei. O Chico
e o Caetano continuam tão atuais quanto antes. Acho maravilhoso que volte a
haver um respeito pelos nossos maiores artistas no campo da música. ISTOÉ - O sr. acha que
aos 50 anos ainda estará compondo e fazendo sucesso? Renato
Russo - Não sei. Não sei nem mesmo o que vou estar fazendo daqui a três dias. ISTOÉ - Uma pesquisa
recente mostra que o universitário do Rio de Janeiro não tem o hábito de ler.
Os jovens são mais alienados hoje do que há dez anos quando surgiu o Legião
Urbana? Renato
Russo - O jovem é jovem desde que o mundo é mundo. O que eu acho um crime é a
falta de perspectiva; para o jovem no Brasil. Acho que se o jovem é alienado
hoje, é porque é burro. Atualmente existe muito mais informação. ISTO É - As drogas são
uma presença constante no mundo do rock. A vítima mais recente foi o Kurt
Cobain, líder do Nirvana, que se suicidou. Como o sr. vê essa conexão? Renato
Russo - Acho que a droga é uma coisa presente em todo o mundo, só que a dona
de casa que toma bolinhas não sobe ao palco para fazer show. Assim como o
motorista de ônibus que todos os dias sai do trabalho e vai tomar uma
cervejinha com os amigos. É exatamente a mesma coisa. O que acontece no rock é
que existe uma glorificação e uma glamourização desse tipo de comportamento,
porque por algum motivo se acha que isso é uma coisa irreverente, rebelde e
ligada à adolescência. Os artistas estão mais expostos. Chama muito mais atenção
um Kurt Cobain morrer do que aquele vizinho seu prédio que morreu de cirrose. A
glamourização do rock parte da imprensa. ISTO É - Não acha que
essa glamourização faz parte do próprio mundo do rock? Renato
Russo - O Paul Mccartney disse certa vez: "Eu tomo LSD, mas quem está
fazendo o maior escarcéu são vocês da imprensa." Se o pessoal vai para o
clube e toma Ecstasy, isso é com ele mas se sai uma página inteira de jornal
dizendo que a juventude inglesa está fazendo isso e que isso é bacana de se
fazer, não me venham depois botar a culpa no rock'n'roll. Ficam vendo o cara se
destruindo no palco e acham maravilhoso. Eu não acho maravilhoso a Janis Joplin
sozinha num quarto, saindo para comprar heroína, caindo, quebrando a cara na
escada e morrendo. Não acho legal Jimmi Hendrix, o maior guitarrista de todos
os tempos, lá, sufocado no próprio vômito. Vem alguém e diz "isso é
rock'n'roll". Para mim, isso é burrice. Nunca vi U2, Dire Straits, Sting,
Morrisey e tantos outros glamourizarem o uso de drogas. Existem milhões de
artistas, mas vai todo mundo ficar falando do Kurt Cobain. Existe uma coisa mórbida
que é as pessoas quererem que os artistas sejam sacrificados em seu lugar. É
uma espécie de expurgo. A maior decepção é quando um Lou Reed sobrevive, ou
Eric Clapton ou Keith Richards. Morrem os 10% que são dependentes químicos. O
alcoolismo é uma dependência química e isso é uma doença primária, crônica,
incurável e fatal. Sempre termina em morte. É uma pena. O Cobain era
extremamente talentoso. Mas e aí? Não vai mais ter disco do Nirvana, sinto
muito. ISTO É - Como foi que o
sr, começou a tomar drogas? Renato
Russo - Isso é pergunta que se faça, ô cara? Foi tomando uma cachacinha numa mesa
de bar, está bom assim? ISTO É - Como é sua
relação com as drogas e o álcool? O sr. é viciado? Renato
Russo - Não. Eu não posso tomar drogas. Sou alcoólatra e dependente químico.
Freqüento um grupo de apoio, de auto-ajuda, de pessoas que têm o mesmo
problema, que se reúnem para se dar força. Estou seguindo a programação dos
12 passos, que não tem nada a ver cora religião, mas é uma coisa espiritual.
A programação faz com que você tome uma consciência espiritual sem
necessitar do álcool. Não sei dizer se viciado é a palavra certa. Eu sou
dependente químico. Usei drogas durante 15 anos, lícitas e ilícitas. Isso é
uma coisa da qual eu não me orgulho, mas acredito nessa coisa do poder
superior: eu vim para cá assim, né? É uma coisa que tinha que acontecer. Eu
dou graças a Deus, porque hoje estou bem. Mas cheguei num ponto parecido com o
do nosso amigo Cobain. ISTO É - O sr. já
tentou se suicidar? Renato
Russo - Não, mas meu plano era ir até... A doença te domina de tal maneira
que você pensa que é daquele jeito, mas na verdade não é. É como uma
depressão. Você não consegue sair daquilo, vai usando isso, aquilo e, de
repente, o mundo vai fechando. Você fica agressivo sem perceber. Tudo é cinza.
Você não consegue ver nada de positivo. E a vida não é nem boa nem ruim: a
vida é o que a gente faz da vida, mas, é claro, se você vive entupindo seu
corpo com toxinas... No começo é até interessante. É o que a gente chama de
lua-de-mel. Depois é fatal. Quem é dependente químico, se não parar, morre.
E se não morrer de overdose, suicídio ou câncer no fígado, morre em acidente
de carro ou coisa assim. ISTO É - O sr. já foi
chamado de profeta da sua geração. Como reage a isso? Renato
Russo - Não me vejo como profeta ou Messias nem nada. Sou um cantor de rock, um
músico, um artista. Eles te colocam lá em cima para depois te derrubar. É o
que estão fazendo agora com o Betinho. Primeiro Betinho é maravilhoso. Aí,
acontece qualquer coisa e Betinho não é mais maravilhoso. ISTOÉ - O sr. acha que
o Brasil tem jeito? Renato
Russo - Não tenho que responder isso. Trabalho, faço minhas coisas. Se eu não
acreditasse em nada, não estava aqui ensaiando com minha banda, não teria
vontade de ver meu filho quando vou a Brasília. Se não acreditasse em nada,
dava um, tiro na cabeça como o Kurt Cobain.
Entrevista enviada por Mário Luiz Simici |
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Skooter 1998 - 2008 |
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