Legi�o Urbana Uma Outra Esta��o
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O novo rei do rock Revista Veja - 17 de outubro de 1990 Lutando contra o estigma da viol�ncia numa turn� consagradora, Renato Russo transforma o Legi�o Urbana na sensa��o dos palcos e do disco � como se o personagem certo entrasse no filme errado - algo como Arnold Schwarzenegger saltitando e cantando pelos bosques do Tirol no papel de Novi�a Rebelde. O p�blico que foi ao est�dio do Guarani, em Campinas, no interior de S�o Paulo, na quinta-feira passada, assistir ao show do grupo Legi�o Urbana acabou surpreendido pelo vocalista Renato Russo. Ele, que foi um dos fundadores no pa�s do movimento punk - aqueles cujos seguidores costumavam furar o pr�prio nariz com alfinetes e a paci�ncia alheia com a pose de rebeldes automarginalizados -, entrou no palco sobra�ando um colorido buqu� de flores. Ele, que em shows anteriores metralhou plat�ias classificando-as de "fascistas" ou "bobocas", passou as duas horas de espet�culo namorando o p�blico, chegando a agradecer os aplausos de joelhos. Por fim, ele, que ficou conhecido com virulentos protestos musicas no quilate de Que Pa�s � Este (Nas favelas/No Senado/Sujeira pra todo lado), reservou um momento do show para elogiar a campanha antidrogas do governo e informar que "o Brasil � o pa�s do futuro". S� um componente do show, nesse ros�rio de surpresas, n�o mudou: o extraordin�rio sucesso do grupo. O Legi�o Urbana se consolidou, na turn� que h� seis meses cumpre pelo pa�s, como o acontecimento mais quente em sua �rea de atua��o musical, levando sucessivamente as plat�ias ao del�rio. Em diversos shows no passado, esse del�rio desaguou em quebra-quebras dignos de um levante de pres�dio, como ocorreu em abril, quando o gin�sio poliesportivo de Po�os de Caldas, em Minas Gerais, foi parcialmente depredado pelo p�blico. Hoje, por�m, Renato Russo, l�der, cabe�a pensante e imagem do Legi�o, parece disposto a conquistar o p�blico com flores e n�o com metralhadoras. A guinada do grupo come�ou no ano passado, com o lan�amento do disco As Quatro Esta��es, no qual trocou o som pesado e primal que marcava os LPs anteriores por can��es que falam de amor e melodias mais elaboradas. Alguns f�s - aqueles que sempre veneraram Renato Russo como o messias do rock pesado - torceram o nariz. Com a virada, no entanto, o Legi�o mais ganhou do que perdeu admiradores. As Quatro Esta��es vendeu at� agora nada menos que 730 000 c�pias, mais do que a soma dos �ltimos LPs dos principais rivais do Legi�o, Cazuza e Paralamas. Enquanto essas bandas se apresentam normalmente em teatros, o Legi�o s� faz shows em gin�sios e est�dios de futebol. Em Campinas, na quinta-feira, o p�blico estimado era de 16 000 pessoas, em pleno meio de semana. O grupo chegou a arrastar 60 000 pessoas para um show no Jockey Clube do Rio de Janeiro, em julho, e 42 000 pessoas para o est�dio do Palmeiras, em S�o Paulo, em agosto. Fundo da Cartola - Com esse desempenho, o Legi�o Urbana herda a abandonada coroa do RPM no reinado do rock nacional - e as semelhan�as terminam por a�. O RPM, � luz do marketing, era o prot�tipo da banda destinada a fazer um megassucesso - e o Legi�o, um grupo fadado a agradar apenas a um p�blico restrito. O RPM apresentava um vocalista com pose de astro pop ingl�s e voz sensual - Paulo Ricardo. O Legi�o ataca com Renato Russo, um cantor com a apar�ncia de um jogador de p�quer em fim de noite, a sensualidade de uma vov� de pijama e proclama��es bissexuais: "Eu sempre gostei de meninos, gosto de meninas tamb�m", disse numa entrevista recente. Em contrapartida � m�sica e �s letras discursivas do RPM, o Legi�o tinha a oferecer at� h� pouco um som primitivo e poesias rebuscadas, coalhadas de cita��es e met�foras, embora sempre criativas. Como a m�sica n�o � s� marketing, mas tamb�m talentos e id�ias, o RPM passou e o Legi�o Urbana continua. Em As Quatro Esta��es, al�m da vendagem astron�mica, o grupo conseguiu um feito singular na MPB: emplacar nas r�dios seis faixas do disco. Essa proeza � ainda mais significativa ao se considerar que essas can��es contrariam as receitas de sucesso. Nenhuma delas tem um refr�o marcante, em geral as letras s�o longas e algumas lan�am m�o de cita��es do fundo da cartola. O Legi�o chega ao requinte - ou � pretens�o - de colocar m�sica num soneto de Cam�es, em Monte Castelo. Cal�as Rasgadas - A maioria dessas m�sicas � resultado da imagina��o de Renato Russo, que est� para o grupo assim como Maradona para a sele��o argentina na Copa da It�lia: ele vale por 90% do time. Nascido no Rio de Janeiro e criado em Bras�lia, filho de um economista do Banco do Brasil, Renato Manfredini J�nior, hoje com 30 anos, � um daqueles cidad�os que desde pequenos s�o apontados como algu�m que ir� ser diferente. Aos 4 anos de idade, iniciou seus estudos de piano. Aos 5 , j� sabia ler e escrever. Aos 7, mudou-se com a fam�lia para os Estados Unidos e, em apenas dois meses, aprendeu a falar ingl�s. Sempre foi o primeiro da classe. Aos 18 anos, como seria previs�vel, come�ou a mudar de comportamento. "Um dia ele chegou em casa com as cal�as rasgadas e cheias de alfinetes", lembra sua m�e, Maria do Carmo Manfredini. "Disse que tinha virado punk". Tinha mesmo. Data desta �poca - 1978 - a funda��o do grupo Aborto El�trico, um dos precursores do movimento punk no Brasil. Com o Aborto, em que pontificava ao lado do baterista Felipe Lemos, o "F� Lemos", hoje no conjunto Capital Inicial, Russo ensaiou as atitudes de rebeldia que no futuro iriam se tornar sua marca registrada. Tocava punk rock em sorveterias da moda e na porta de festinhas de rapazes ricos da cidade com o intuito de azucrinar-lhes a paci�ncia. "Eles nos amea�avam, e �s vezes a pol�cia aparecia", conta F� Lemos. "Para fugir, Renato come�ava a falar ingl�s e dizia que era filho de algum embaixador. Acabava sendo solto". Com o passar do tempo, Russo deixou de lado o protesto adolescente e acabou por montar o Legi�o Urbana, cuja forma��o hoje se completa com o baterista Marcelo Bonf� e o guitarrista Dado Villa-Lobos, sobrinho-neto do compositor hom�nimo que � a gl�ria da m�sica erudita brasileira. Golpes de Microfone - Tendo o irrequieto Russo � frente, o Legi�o sempre conviveu com o estigma de grupo que incita � viol�ncia, principalmente porque em muitas ocasi�es seus shows desandam em pancadaria de verdade. Em 1988, um show para 42 000 pessoas no Est�dio Man� Garrincha, de Bras�lia, acabou com saldo de mais de 200 feridos, 58 pessoas presas e treze �nibus depredados. Com os �nimos acirrados pela a��o da pol�cia - que investiu a cavalo contra os que tentavam furar a fila - e com o atraso de uma hora da banda, o show j� come�ou tenso. O estopim foi aceso quando um f� da banda subiu ao palco e se agarrou ao cantor, sendo repelido a golpes de microfone. O p�blico, a partir da�, passou a dirigir improp�rios e a jogar fogos de artif�cio sobre a banda, ao que Renato revidou chamando o p�blico de "fascista" e "boboca" e encerrou o show. "Se n�o fosse o trabalho da pol�cia, Renato ia ser linchado", diz Hezir Espindola, � �poca respons�vel pelo Est�dio Man� Garrincha. "Ele foi mal-educado em cena". A turn� de lan�amento de As Quatro Esta��es, ao longo deste ano, n�o apresentou nenhum epis�dio t�o grave, mas a fama de viol�ncia do grupo se manteve. Em Po�os de Caldas, as 7 000 pessoas que se acotovelavam num gin�sio quebraram vidros do local, destru�am s banheiros e mobilizaram todo o efetivo policial da cidade. Tudo porque, depois do in�cio do espet�culo - que come�ou com mais de uma hora de atraso -, Renato Russo cantou apenas uma m�sica e se retirou do palco, adiando o show por n�o estar se sentindo bem. Os shows da mesma turn� realizados em S�o Paulo e no Rio de Janeiro tamb�m tiveram sua cota de emo��es. Em S�o Paulo, em agosto, cerca de 1 000 f�s ficaram de fora do Est�dio do Palmeiras devido a um lote de ingressos falsos vendidos para um show. No Rio de Janeiro, onde 60 000 pessoas lotaram o Hip�dromo da G�vea em julho, um grupo de f�s baderneiros iniciou uma guerra de areia com os seguran�as. Renato Russo amea�ou n�o voltar para o esperado bis. "N�o vim show para animais", berrou ao microfone. O grupo saiu empurrando todo o mundo que estava em volta. Panela de Press�o - O Renato Russo que protagonizou esses tumultos e o cantor que subiu ao palco em Campinas na semana passada parecem ter tanta afinidade quanto Xuxa e Frankenstein. O humor de Russo parece andar de montanha-russa. Quando est� no alto, segundo seus amigos, ele � uma pessoa doce, simp�tica e capaz de entabular conversas em que brilha o artista talentoso. Quando est� em curva descendente, pode transformar os shows em panelas de press�o prestes a estourar pelos ares. "Renato sempre teve temperamento explosivo", avalia S�rgio Resende, um dos donos do bar Gate's, em Bras�lia, onde o compositor aprontou um q�iproqu� em junho passado. Durante a apresenta��o de um grupo de jazz, ele resolveu subir ao palco para entoar um blues. A princ�pio, os m�sicos concordaram em acompanh�-lo, mas logo o canto de Russo se transformou num amontoado de palavras inintelig�veis. Os m�sicos deixaram o palco, e Russo ganhou uma estrepitosa vaia das 150 pessoas presentes. "Ele � boa pessoa. Apenas n�o consegue se controlar em certas situa��es ", avalia Rubens de Carvalho, s�cio de Resende no bar. "H� muito exagero no que se fala de Renato", reclama Romildo Valiate Jr., um dos fundadores do f�-clube Legi�o Urbana no Cora��o dos Paulistas, que re�ne trinta membros e edita um jornalzinho com as novidades sobre a banda. Renato Russo pode n�o encarnar o agitador que alguns de seus shows fazem supor, mas faz certo esfor�o para cultivar essa imagem. "Ele � fogo. Quando est� disposto, incita mesmo � agita��o", diz Walter Fonseca, dono da Fonseca's Gang, empresa paulista que � chamada para garantir a ordem em nove entre dez shows de grande porte realizados no pa�s. "Quando o Legi�o fecha contratos para shows, inclui uma cl�usula que obriga o empres�rio a convocar nossos servi�os, mas, se entramos em cena para acalmar um f� mais exaltado ou violento, Renato vai ao microfone para nos chamar de truculentos", queixa-se Fonseca. "E ainda levamos vaia do p�blico." Cutelo e Spray - As atua��es do Legi�o Urbana que acabam em tumulto s�o uma das pontas, entre as mais vis�veis devido � proje��o do grupo, de um fen�meno que habita os shows de m�sica jovem: o do rock viol�ncia. Assim como o Legi�o, grupos como o Sepultura, de Belo Horizonte, ou Nenhum de N�s, do Rio Grande do Sul, costumam criar fa�scas de tens�o que logo detonam explos�es caso na plat�ia existam integrantes das gangues organizadas que hoje acorrem aos shows de rock. Herdeiras dos punks e dos skinheads (cabe�as raspadas) ingleses, essas turmas jogam pesado e s�o capazes de bater duro em quem lhes cruze pelo caminho. H� tr�s anos, um desses grupos, o Carecas do ABC, protagonizou um tumulto memor�vel num show do grupo de rock pesado Ramones, no Palace, em S�o Paulo. Cerca de oitenta deles reuniram-se em frente ao local entoando gritos de guerra qual v�ndalos enfurecidos. "Fomos protestar pelo show ser no Palace, onde n�o dava para entrar porque o ingresso era caro", lembra "Carrasco", codinome de um dos Carecas do ABC. "Esses jovens brigam contra o sistema porque se sentem marginalizados por ele", filosofa Eduardo Correa Lopes, de 27 anos, que, com sua estampa de caminh�o FNM, ganhou o apelido de "Caixa d'�gua". H� tr�s anos, Lopes integrava as tribos de S�o Paulo especializadas em transformar shows de rock em arrua�as. Hoje, desistiu da milit�ncia e ocupa o cargo n�o menos tranq�ilo de inspetor da Febem. Ainda assim, guarda no vocabul�rio resqu�cios do jarg�o dos skinheads. Rapaz rico, para ele, por exemplo, � "beb�". Aprontar uma briga ou cometer um crime � "fazer uma fun��o", e "colocar no cavalete" entende-se por humilhar algu�m que foi atacado. "Tenho medo do que possa acontecer daqui para frente nos shows com a sofistica��o a que essas gangues est�o chegando", diz Walter Fonseca. Nos �ltimos meses, ao revistar roqueiros em portas de shows, a equipe de Fonseca tem apreendido desde cutelos de a�ougueiro at� a �ltima palavra em instrumento de agress�o: um tubo de spray com g�s lacrimog�neo, fabricado em Porto Alegre e oficialmente restrito ao uso militar, que � aplicado diretamente no rosto da v�tima. Seria disparate dizer que toda essa viol�ncia � apenas um reflexo do que acontece nos palcos do rock. Se fosse assim, o teatro La Scala de Mil�o seria depredado a cada encena��o da �pera A�da, em que se pune um soldado enterrando-o vivo com a amante. Grupos como o Legi�o Urbana carregam o estigma de violentos porque os acordes e as palavras agressivas de muitas de suas m�sicas, al�m de incentivar a plat�ia a dan�ar e liberar tens�es, acabam por servir de pretexto para jovens que s�o delinq�entes com ou sem rock. O �xito do Legi�o, a megavendagem de seus discos e a alegria que reina em seus shows quando Renato Russo resolve fazer um bom espet�culo provam que, ao ouvir rock, o p�blico quer mesmo � se divertir. No momento, o Legi�o Urbana � a melhor op��o para isso na m�sica brasileira. Texto enviado por: Emilena Specht |
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Skooter 1998 - 2008 |
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